Antes de ser eleito presidente, em 2018, Jair Bolsonaro exerceu sete mandatos na Câmara dos Deputados. Agora candidato à reeleição, ele se vê diante da possível primeira derrota eleitoral de sua carreira e sugeriu diversas vezes que poderia não reconhecer o resultado das urnas se perdesse. “Só Deus me tira da cadeira presidencial”, declarou Bolsonaro, aparentemente ameaçando desafiar o próprio sistema democrático que o alçou ao poder.

Países mundo afora são ameaçados por potenciais autocratas, e o caminho para restaurar a democracia é longo e difícil, aponta uma análise feita pela DW.

O Brasil é um dos 12 países cujo sistema democrático está pendendo para a autocracia, de acordo com dados publicados pelo Instituto Variedades da Democracia (V-Dem), um grupo de pesquisa independente sediado na Universidade de Gotemburgo, na Suécia.

As outras 11 nações nessa condição são: Polônia, Níger, Indonésia, Botswana, Guatemala, Tunísia, Croácia, República Tcheca, Guiana, Maurício e Eslovênia.

Além desses 12 países onde crises democráticas ainda se desenrolam, pesquisadores do V-Dem identificaram outros 17 que perderam essa luta na década passada – incluindo a Turquia, as Filipinas e a Hungria.

Não apenas democracias de longa data estão se voltando para o autoritarismo, mas regimes autocráticos estão segurando com mais firmeza as rédeas do poder. Em países como Rússia e Venezuela, governos autoritários têm se consolidado e as liberdades civis vêm sendo reduzidas.

Apesar de hoje existirem mais países democráticos do que há 100 anos, o processo de democratização se estagnou globalmente no início dos anos 2000 — e o de autocratização interrompeu sua trajetória de declínio.

A democracia tem diferentes formatos

Geralmente, imaginamos a democracia como algo binário: ou um país é democrático ou não é. Na verdade, o conceito tem mais nuances. Pesquisadores do V-Dem classificam os países em quatro grandes categorias.

Em autocracias fechadas, como a China e o Catar, não há eleições multipartidárias para chefe do Executivo ou para o Poder Legislativo.

Em autocracias eleitorais, como a Turquia e a Venezuela, há eleições, mas não são livres ou justas.

Em democracias eleitorais, como o Brasil e a África do Sul, há eleições livres e justas, apesar de existir desigualdade e de algumas minorias não terem seus direitos resguardados.

Nas democracias liberais, como a Alemanha e a Suécia, há direitos garantidos para minorias e um sistema funcional de freios e contrapesos entre os Poderes.

Os 179 países classificados pelo V-Dem estão divididos quase igualmente entre autocracias eleitorais ou fechadas e democracias liberais ou eleitorais. Alguns dos países reconhecidos pelas Nações Unidas, como o Vaticano ou San Marino, não têm dados disponíveis.

Essa divisão, porém, pode esconder sutilezas importantes, de acordo com Bastian Herre, pesquisador da organização sem fins lucrativos Our World in Data que estudou a relação entre ideologias de governos e democracia durante seu doutorado em ciência política na Universidade de Chicago.

“Com essa divisão, sabemos que a Coreia do Norte e o Irã não são democracias e que o Chile e a Noruega são”, diz Herre. “Mas não sabemos o quão mais democrático o Irã é em relação à Coreia do Norte, nem quão menos democrático o Chile é em relação à Noruega.”

Herre diz que essas categorias não são necessariamente úteis para detectar recuos na democracia enquanto eles acontecem. “Se queremos ter um sistema de alerta, essas não são as medidas certas. Elas só iriam aparecer quando uma ruptura democrática já aconteceu”, diz.

É aí que o Índice de Democracia Liberal (LDI, na sigla em inglês) entra em ação. Trata-se de um índice que varia de 0 até 1, e quanto mais alto ao valor, mais perto dos ideais da democracia liberal está um país.

No LDI, diferenças importantes entre países que estão em uma mesma categoria se tornam mais aparentes. O índice também permite que pesquisadores vejam como o estado da democracia em determinado país muda ano após ano. Isso é especialmente significativo porque, hoje, as democracias não costumam morrer do dia para a noite.

Marcha gradual rumo à autocracia

Tanques desfilando, tropas mobilizadas e a democracia indo embora com uma explosão (ou uma série de explosões) – golpes são imagens que geralmente vêm à mente quando pensamos em países que passaram a ter regimes autoritários.

Embora esse tipo de ruptura ainda aconteça, atualmente a marcha rumo à autocracia geralmente é mais gradual, com pequenas mudanças se acumulando até que reste muito pouco do antigo sistema.

Isso é o que aconteceu em alguns dos exemplos mais recentes de democracias estabelecidas que se tornaram autocracias. Essa dinâmica está acontecendo também em países que ainda continuam democráticos, mas que estão na mesma trajetória de declínio.

Os movimentos mais fortes em direção à autocracia costumam coincidir com a eleição de líderes iliberais, como Jair Bolsonaro, no Brasil, Andrzej Duda, na Polônia, Viktor Orbán, na Hungria, Recep Tayyip Erdogan, na Turquia, e Narendra Modi, na Índia.

Entretanto, o pesquisador brasileiro Fernando Bizarro, que estuda instituições de governo na Universidade Harvard, afirma que a ascensão de políticos antidemocráticos pode ser geralmente atribuída ao agravamento de problemas mais antigos.

“Para que esses líderes cheguem ao poder, você precisa de outros elementos, como uma crise dos partidos tradicionais”, afirma. Um aumento da hostilidade política também pode estar entre as causas de crises democráticas, aponta. “A polarização cria o sentimento de que, como você detesta seu oponente, vale tudo para se livrar dele – inclusive destruir a democracia.”

Pesquisadores do V-Dem identificaram 81 períodos em que países viveram quedas prolongadas na qualidade da democracia desde 1900 – e 50 destes aconteceram a partir dos anos 2000. Em aproximadamente 75% dos casos, a crise resultou em uma transição completa para um regime autocrático.

“Os atores que promovem a autocratização são geralmente os chefes do Executivo, e eles podem ter grandes maiorias parlamentares”, diz Sebastian Hellmeier, um dos pesquisadores que analisaram episódios de crise democrática. “No fim, é como se fosse uma ‘morte por um milhão de cortes’, com muitas mudanças pequenas que são difíceis de impedir até que seja tarde demais.”

E as democracias que sobrevivem?

Além de simplesmente detectar quando uma crise na democracia aconteceu, a pesquisa feita por Hellmeier e seus colegas tenta entender por que algumas democracias entram em colapso e por que outras resistem.

Para essa análise, os pesquisadores estavam mais preocupados com a competitividade e a justiça das eleições. Assim, eles usaram uma ferramenta de análise um pouco diferente: o Índice de Democracia Eleitoral (EDI, na sigla em inglês). O EDI funciona quase como o LDI, mas sem considerar elementos como liberdades civis e freios e contrapesos entre os Poderes.

De acordo com os resultados, essa resiliência democrática pode acontecer em duas etapas diferentes. De início, países podem evitar que uma crise se instale. Isso é o que os pesquisadores chamam de “resiliência inicial”. Países em que não ocorreram episódios de erosão democrática recentemente, como a Finlândia e o Canadá, são exemplos desse tipo de resistência.

A “resistência a rupturas”, por sua vez, ocorre em países onde crises de qualidade da democracia se estabelecem, mas são contidas antes que o sistema político descambe para alguma forma de autocracia. Trata-se de um fenômeno mais raro que a resiliência inicial, mas que aconteceu recentemente em países como Equador e Coreia do Sul.

A análise destaca diversos fatores associados com cada tipo de resiliência. Desenvolvimento econômico, por exemplo, anda lado a lado com a resiliência inicial, mas parece não afetar o desfecho de uma crise uma vez que ela já tenha começado. Por outro lado, ter países vizinhos democráticos parece ser um fator importante para que um país consiga conter a crise antes de uma ruptura.

Uma tradição democrática mais longa e um Poder Judiciário independente estão associados com ambos os tipos de resiliência. De acordo com Hellmeier, a presença de instituições longevas faz com que os cidadãos pensem na democracia como o “único jogo possível”, forçando os atores políticos a atuarem de acordo com as regras estabelecidas. Um Judiciário forte, por sua vez, pode agir como último bastião de defesa contra um líder que tente violá-las.

Em alguns casos, especialmente em países com instituições menos desenvolvidas, fatores externos também podem cumprir um papel significativo.

Manter a democracia requer uma oposição

Em 2013, o presidente equatoriano Rafael Correa venceu sua terceira eleição consecutiva. Ele era um político popular, fortalecido pelo crescimento econômico e pelo aumento de políticas de bem-estar social. Seu governo, porém, também foi marcado pela redução de liberdades para a mídia, a oposição e a sociedade civil.

Correa era o tipo de líder que democracias têm dificuldades de controlar. Isso mudou quando o crescimento econômico estagnou, e o presidente viu seu governo mergulhado em um escândalo internacional envolvendo a construtora brasileira Odebrecht.

Correa decidiu não concorrer a mais uma reeleição em 2017, mas declarou apoio ao seu então vice-presidente, Lenin Moreno. Moreno venceu, mas rompeu relações com seu antigo mentor e posteriormente desfez algumas de suas mudanças constitucionais e regulações restritivas.

Melis Laebens, pesquisadora de pós-doutorado na Universidade de Oxford, diz que o caso equatoriano é um exemplo de um possível caminho de recuperação para democracias sob ameaça. Mesmo que líderes com pretensões autocráticas tenham um controle firme sobre a política doméstica, eventos internacionais inesperados, como crises econômicas e investigações sobre corrupção, podem deixá-los vulneráveis.

“No caso Odebrecht, o fato de a investigação ser internacional fez muita diferença em termos de pressionar os aliados de Correa a mudarem de posição”, diz a pesquisadora. “O que importa é que a oposição, quando tem oportunidade, mesmo que não seja capaz de remover o incumbente, consiga ao menos manter algumas fontes legítimas de poder.”

O Equador também serve como um alerta sobre o que pode acontecer depois que o retrocesso democrático é aparentemente revertido. Desde então, o país convive com protestos que parecem não ter fim.

O atual presidente, Guillermo Lasso, acabou de sobreviver a uma votação de impeachment. Correa foi condenado por corrupção e deixou o país, mas ainda tem influência sobre política local e muitos apoiadores.

“Às vezes, um Poder Executivo excessivo pode simplesmente estar se alternando com uma fraqueza excessiva do governo”, diz Laebens. “Esses eventos transformam a política no longo prazo. É raro que eles simplesmente desapareçam.”

No Brasil, Bolsonaro enfrentará nas urnas o ex-presidente e atual favorito nas pesquisas Luiz Inácio Lula da Silva no próximo dias 2 de outubro. Caso o atual mandatário saia derrotado da disputa, analistas temem que o país seja palco de violência política e cenas como as vistas durante a invasão de apoiadores do ex-presidente americano Donald Trump ao Capitólio, em Washington.

Bolsonaro vem espalhando paranoia infundada sobre a confiabilidade do sistema eleitoral e, em recente entrevista ao Jornal Nacional, afirmou que respeitaria os resultados das urnas “desde que as eleições fossem limpas”. No 7 de Setembro, o presidente citou episódios históricos de tensão política e ruptura democrática no Brasil, incluindo o golpe militar de 1964, e disse que a “a história pode se repetir”.