Empresas foram denunciadas na Alemanha por supostamente comprarem produtos de fazendas brasileiras com violações de direitos humanos. Companhias negam.A Nestlé e a AmRest, que administra a Starbucks, foram denunciadas na Alemanha por comprarem café brasileiro supostamente associado a trabalho análogo à escravidão, trabalho infantil e tráfico de pessoas. Também foram relatadas violações de direitos humanos na China, no México e em Uganda.

Os relatos foram apresentados na última quarta-feira (29/10) ao Escritório Federal de Economia e Controle de Exportação da Alemanha (Bafa, na sigla em alemão), com base na Lei de Devida Diligência na Cadeia de Suprimentos. A norma, de 2023, responsabiliza grandes empresas por violações de direitos humanos e danos ambientais em suas cadeias de fornecimento.

À DW, a Nestlé e a Starbucks negaram as acusações. O Neumann Kaffee Gruppe também foi incluído nas reclamações, mas por situações não relacionadas ao Brasil.

“Nossos relatórios revelam graves violações de direitos humanos nas cadeias globais de fornecimento de café. Em plantações que abastecem a Nestlé, a Starbucks, a Neumann Kaffee Gruppe e outras empresas, crianças trabalham, pessoas são assediadas e têm seus direitos negados”, disse à DW Etelle Higonnet, diretora da Coffee Watch, uma das organizações responsáveis pelas revelações.

“Acreditamos que os problemas são extremamente sérios, sistemáticos e generalizados. As autoridades alemãs precisam agir para garantir que as empresas mencionadas finalmente assumam sua responsabilidade”, afirmou Higonnet.

Além da Coffee Watch, as reclamações foram apresentadas por outras organizações não governamentais, como a International Rights Advocates.

Violações na cadeia do café

As revelações têm como base investigações conduzidas pelos seus autores, pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), pela Repórter Brasil e por outras entidades de defesa dos direitos humanos. Essas apurações também resultaram em ações nos Estados Unidos.

Em abril, a Coffee Watch protocolou uma reclamação na Alfândega e Proteção de Fronteiras dos Estados Unidos. Pediu a suspensão das importações de café brasileiro pelas multinacionais Starbucks, Nestlé, Jacobs Douwe Egberts (JDE), Dunkin’, Illy e McDonald’s por suposta ligação com trabalho análogo à escravidão.

Também em abril, a International Rights Advocates entrou com uma ação contra a Starbucks na Carolina do Norte, pedindo indenização de R$ 1 bilhão para oito trabalhadores resgatados em fazendas em Minas Gerais em situações análogas a trabalho escravo. Eles estariam em propriedades que fariam parte da cadeia de fornecimento das empresas.

Segundo Higonnet, da Coffee Watch, é difícil propor ações na Justiça em muitos países consumidores de café. Então, viram na Lei da Cadeia de Suprimentos uma possibilidade de responsabilização das empresas na Alemanha.

A lei prevê que as empresas disponibilizem canais ou processos de reclamação e denúncia acessíveis publicamente. Assim, após uma reclamação junto às empresas, elas podem responder e, eventualmente, corrigir possíveis violações.

Caso as companhias não possuam canais do tipo ou não houver reação, é possível encaminhar, junto à Bafa, uma solicitação oficial para que as autoridades tomem providências. As respostas enviadas pela Nestlé e AmRest (Starbucks) não foram consideradas suficientes pela Coffee Watch – por isso, as organizações fizeram um requerimento formal na última quarta-feira.

De acordo com as organizações, a Nestlé e a AmRest (Starbucks) comprariam o café da cooperativa Cooxupé, de Guaxupé (MG). A Nestlé também adquiriria os produtos da Cooabriel, de São Gabriel da Palha, no Espírito Santo.

As violações de direitos humanos, como trabalho análogo à escravidão, trabalho infantil e tráfico de pessoas, teriam ocorrido em fazendas que fornecem o café para as duas cooperativas.

Adolescente e escravidão

Um dos casos relatados ocorreu em 2024, quando um adolescente de 16 anos foi resgatado pelo MPT e pela Polícia Federal em uma fazenda no sul de Minas Gerais. Morador de um quilombo, ele teria sido aliciado por um “gato”, como são chamados os recrutadores dos trabalhadores.

A promessa incluía, segundo as organizações, boas condições de trabalho e pagamento justo. Mas o adolescente encontrou condições degradantes: jornadas de 11 a 12 horas diárias, sem descanso, sem equipamento de proteção e sem acesso à água potável ou banheiros.

Um relatório do MPT obtido pelas organizações classificou o caso como trabalho escravo e uma das piores formas de trabalho infantil. O documento destacou que o jovem trabalhava descalço e em condições inadequadas para sua idade. A fazenda, segundo a denúncia, fornecia café à Cooxupé.

Um outro caso relatado está ligado à Cooabriel. Em 2023, 10 trabalhadores foram resgatados em uma fazenda em Vila Pavão (ES), após serem submetidos a jornadas exaustivas, salários abaixo do mínimo, moradias precárias e vigilância armada para impedir fugas.

O que dizem os acusados

Em nota enviada à DW, a Nestlé disse ter levado as alegações a sério e investigado as acusações. “Confirmamos que a Nestlé não tinha ligação direta com as fazendas em questão ou que já encerrou o relacionamento com um fornecedor devido ao não cumprimento de nossos padrões.”

De acordo com a empresa, a Nestlé tem processos rigorosos para evitar violações de direitos humanos. “Quando tomamos conhecimento de preocupações relacionadas à nossa cadeia de fornecimento, conduzimos as devidas investigações e trabalhamos com nossos fornecedores diretos para tomar medidas rápidas quando necessário – incluindo o encerramento da relação com o fornecedor nos casos em que nossos padrões não são atendidos.”

A Starbucks, também em nota, disse estar comprometida com o direito dos trabalhadores. Informou que a base do trabalho é feita pelo programa de verificação C.A.F.E. Practices, desenvolvido com especialistas externos e que inclui uma rigorosa verificação e auditoria por terceiros.

“Não compramos café de todas as fazendas que fazem parte da cooperativa Cooxupé, que reúne mais de 19 mil produtores. A Starbucks adquire café de apenas uma pequena fração dessas fazendas – e somente daquelas que foram verificadas por meio do nosso programa C.A.F.E. Practices, um dos mais rigorosos do setor e que vem sendo continuamente aprimorado desde sua criação em 2004.”

E nota à DW, a Cooxupé afirmou que “repudia de forma veemente qualquer prática análoga à escravidão ou que viole direitos fundamentais em sua cadeia de valor”. Disse que, sempre que toma conhecimento de situações que envolvam situações trabalhistas por parte dos cooperados, adota providências, como interrupção do fornecimento do café ou devolução dos grãos.

“Já houve casos pontuais em que essas ações foram aplicadas preventivamente. No entanto, essas situações representam menos de 0,1% do universo de mais de 21 mil propriedades cooperadas, majoritariamente familiares, que atuam em conformidade com a legislação”.

A Cooabriel não respondeu à DW.

Até mudar o cenário

Antes de fundar a Coffee Watch, Etelle Higonnet trabalhou no Greenpeace e no Mighty Earth, atuando no combate a violações de direitos humanos e problemas ambientais em outras cadeias produtivas, como da soja, carne e cacau.

Decidiu focar na cadeia produtiva do café por ser um setor até então pouco investigado. “Descobri que o problema dos direitos humanos é ainda mais profundo que o problema ambiental”, avaliou.

Com investigações e denúncias em diversos países, a organização almeja mudar o cenário na cadeia do café. “Como é possível ter pobreza intensa, desmatamento e violações de direitos humanos? Eu espero que a indústria compreenda que não vamos parar, vamos seguir fazendo mais e mais até que esses crimes comecem a mudar.”