23/08/2024 - 10:20
Com a escassez de moradia na capital, imóveis da Rússia abandonados há 30 anos provocam polêmica. Não se sabe por que prédios ainda pertencem a Moscou. Uma proposta busca desapropriá-los e entregá-los a Kiev.No bairro de Karlshorst, no sudeste de Berlim, quase todo mundo conhece os edifícios de três andares com as esquadrias das janelas corroídas, nas esquinas da rua Andernacher com Königswinter e da Ehrenfels com Loreley. Há quase três décadas eles estão vazios, e os moradores os chamam simplesmente “Russenhäuser” – “casas dos russos”.
Durante uns 50 anos, moraram nelas famílias de oficiais da União Soviética e, mais tarde, russos, até que em meados de 1994 a Rússia retirou suas últimas tropas da Alemanha, e, portanto, também de Berlim. Porém as casas permaneceram propriedade da Federação Russa.
Hoje elas estão isoladas por cercas. Segundo moradores do bairro, de vez em quando um casal que fala russo vem varrer as folhas secas e o lixo do terreno. Por diversas vezes cidadãos engajados apelaram às autoridades municipais para darem fim ao abandono.
Agora, diante da séria escassez de moradia na capital alemã, aumenta a pressão pública. “Na verdade, se deveria obrigar os proprietários – ou seja, a Rússia – a fazer algo positivo: ou demolir e reconstruir, ou sanear. É uma lástima ter essa mancha da vergonha aqui neste local”, comenta um residente.
No contexto do debate sobre os ativos russos congelados devido à guerra iniciada por Vladimir Putin, a deputada da câmara de Berlim Lilia Usik, de origem ucraniana, propôs que as residências sejam desapropriadas e entregues a Kiev. Segundo ela, trata-se de pelo menos 66 imóveis.
“Minha iniciativa consiste em transferir essas casas à Ucrânia, no âmbito das sanções à Rússia. A Ucrânia poderá, então, vendê-las ou devolvê-las à Alemanha. Desse modo, elas poderão ser reintegradas ao mercado imobiliário berlinense, onde impera uma crise”, explica a política democrata-cristã.
Anomalia do pós-guerra
Karlshorst é um bairro tranquilo e verde, apreciado pelos mais idosos e por jovens famílias. Devido à sua história, contudo, costuma ser associado ao estacionamento de tropas soviéticas: lá, em 8 e 9 de maio de 1945, a Alemanha sob regime nazista assinou sua capitulação incondicional, marcando o fim da Segunda Guerra Mundial.
Em 4 de maio, o Exército Vermelho ordenara por alto-falante aos moradores que deixasse suas casas dentro de 24 horas. Segundo o historiador Christoph Meissner, 8 mil foram desalojados para que os oficiais soviéticos se instalassem. De 1949 a 1990, a região foi parte da República Democrática Alemã (RDA), a “Alemanha Oriental” sob governo socialista. Com a redução gradual da presença militar em Berlim, as forças de ocupação foram devolvendo os imóveis aos alemães, até a retirada definitiva, em 1994.
No entanto “é um paradoxo como essas casas ainda estão em posse da Federação Russa”, reconhece Meissner, que é consultor científico do Museu Berlin-Karlshorst, instalado no edifício onde foi assinada a capitulação. “Na verdade, com a retirada das tropas soviéticas, e mais tarde russas, entre 1990 e 1994, todas as propriedades foram transferidas à República Federal da Alemanha.”
Não houve nenhum acerto extraordinário relativo à transferência desses objetos específicos. O historiador supõe que as autoridades da RDA possam tê-los entregado em algum momento à União Soviética.
Consultado pela reportagem, o Instituto Federal Alemão para Assuntos Imobiliários (BImA) – encarregado de administrar bens da ex-Alemanha socialista, entre outras tarefas – tampouco soube dizer como as “Russenhäuser” permaneceram em mãos russas.
“Fazer a Rússia entender que uma ditadura sai caro”
Formalmente, Moscou só possui outros dois imóveis em Berlim: o prédio de sua embaixada e a Russisches Haus, a Casa Russa da Ciência e Cultura, no centro da capital. Ambos são propriedades diplomáticas, ao contrário das “casas dos russos”.
Porém Meissner ressalva que em 1994 a Rússia conseguiu tomar posse de mais um objeto: uma antiga pista de pouso com um hangar para aviões do começo do século 20, logo ao lado do Museu Berlin-Karlshorst. Também esse terreno, cercado e vigiado por câmeras, vem se dilapidando há anos.
Quanto à proposta de confiscar os imóveis de Karlshorst e entregá-los à Ucrânia, o governo da capital alemã afirma que no momento não existe qualquer possibilidade legal, já que um Estado estrangeiro tem os mesmos direitos e obrigações que qualquer outro proprietário.
“Planos concretos para utilização das casas pelo governo local pressupõem uma disposição da Federação Russa à devolução. Esta não existe, no momento”, explica o departamento responsável. No entanto admite que já houve tentativas de comprá-las de Moscou: em 2020 a administração berlinense escreveu à embaixada russa, anunciando esse interesse, mas a carta ficou sem resposta.
Apesar de tudo, a deputada Lilia Usik se mostra confiante e, após o recesso de verão, discutirá a questão não só com seus correligionários da União Democrata Cristã (CDU), como com representantes do governo local. Por enquanto ela procura chamar a atenção de seus colegas do Bundestag (Parlamento alemão) e do Parlamento Europeu para os imóveis russos.
“Se conseguirmos, vai ser um precedente jurídico. A Rússia precisa entender que uma ditadura sai muito caro, que todas as devastações que ela acarreta não podem simplesmente acontecer sem que ela seja responsabilizada.”