Quatro ou cinco dias depois do assassinato de Chico Mendes é que o Brasil acordou para a importância dele”, lembra a historiadora Mary Allegretti, que se empenhou por nove anos ao lado desse acreano para fazer sua história de vida e sua proposta ambiental serem conhecidas e reconhecidas no Brasil e no mundo. Trinta anos se passaram desde sua morte. Embora seu exemplo tenha disseminado a ação combativa e, ao mesmo tempo, pacífica país afora, ainda hoje não surgiu um novo líder com a mesma força dele.

Chico Mendes levou um tiro no peito em 1988, aos 44 anos, no quintal de casa, na cidade de Xapuri (Acre), a mando do latifundiário Darly Alves da Silva – pai e irmão dos dois executores. Mas só se sabe tudo isso porque a comoção e a pressão social e, principalmente, internacional foram tão intensas que o caso foi investigado até o fim, concluindo com a prisão dos três. Coisa rara no Brasil até os dias de hoje, três décadas depois!

A casa simples onde Chico Mendes viveu seus últimos dias, hoje transformada em museu (Foto: Divulgação)

E a situação só vem piorando. O Brasil ocupa há dois anos o primeiro lugar no relatório de mortes de ativistas ambientais realizado anualmente pela ONG britânica Global Witness (leia quadro na pág. 26). Em 2017, foram executados 57 ativistas brasileiros – mais do que qualquer outro país já viu –, de um total de 207 vítimas identificadas em 22 países. A impunidade não é exclusividade nacional: é um problema generalizado em todos esses lugares, o que torna difícil descobrir os agressores. Mas a Global Witness foi capaz de ligar as forças de segurança do governo a 53 casos, e atores não estatais a 90 crimes.

Se o levantamento mundial já é assustador, outro relatório nacional que está na sua 33a edição, preparado pela Comissão Pastoral da Terra, contabiliza um número maior ainda. Em 2017 foi registrado o maior número de assassinatos em conflitos por terra e recursos naturais dos últimos 14 anos no Brasil: 71 assassinatos, 10 a mais do que no ano anterior. Além do aumento em outras formas de violência: tentativas de execução subiram 63%, e ameaças de morte, 13%.

Chico à frente da sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri (Foto: Edison Caetano / REUTERS)

As perspectivas para 2018 não são nada boas. O mais provável é que este ano feche com ainda mais sangue. “O Brasil vive um contexto de desmonte das políticas sociais, de desmantelamento do Programa Nacional de Proteção a Defensores de Direitos Humanos, de aumento da violência letal em geral, de acirramento de conflitos e de intensa polarização da sociedade com o crescente descaso por direitos humanos. Diante disso, a probabilidade de que o quadro de homicídios de defensores de direitos humanos em 2018 piore é muito alta”, resume Renata Neder, coordenadora de pesquisa, políticas e advocacy da Anistia Internacional Brasil.

Renata aponta que a omissão do Estado tanto em abordar as causas estruturais desses conflitos quanto em adotar medidas emergenciais de proteção aos ameaçados alimenta o ciclo de violência no campo. “Grileiros de terra, grandes proprietários rurais, mineradoras e exploradores de madeira se aproveitam da não regularização fundiária das áreas em que vivem povos indígenas e quilombolas e comunidades rurais tradicionais para expulsá-los na base da violência, apesar de estes últimos terem direito à terra garantido pela Constituição, contando com um processo de demarcação que é extremamente lento.”

Legado relevante

Para Mary, se Chico estivesse vivo não ia acreditar que a situação de insegurança é maior do que no seu tempo e pelos mesmos motivos, mas iria se surpreender – positivamente – com a dimensão que suas propostas ganharam. “Acho que ele não tinha ideia de que o alcance das reservas extrativistas teria as proporções que tem hoje.”

Atividade no Memorial Chico Mendes, criado em 1996 para divulgar as ideias e a luta do líder ambientalista (Foto: Clodoaldo Pontes)

Claro que a solução não foi criada por Chico, mas foi a partir da sua liderança que os povos da floresta (indígenas e comunidades extrativistas, como os seringueiros) se uniram e pensaram um conceito de reforma agrária sob medida para o problema que enfrentavam. Até 1970, o norte do país era quase todo coberto por florestas. Até que o governo federal passou a promover a ocupação da Amazônia por meio de projetos de infraestrutura, da agropecuária, da exploração madeireira e da mineração.

Quando esses grupos foram para lá, começaram a destruir as riquezas naturais e o modo de vida das comunidades tradicionais da região. Para proteger esses territórios e essas culturas originais, o formato de lotes individuais praticado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) não fazia sentido. Os povos da floresta imaginaram, então, uma propriedade da União que permitisse a presença humana, o que não acontecia nos tipos de unidades de conservação da época. Surgiu assim a “reserva extrativista” (abreviada para resex) que passaria a garantir que as populações tradicionais se mantivessem nos seus territórios vivendo da exploração autossustentável e ajudando a preservar seus recursos naturais.

Ângela Mendes, filha mais velha do ativista e coordenadora do Comitê Chico Mendes (Foto: Carlos Ruggi/Estadão Conteúdo)

A Resex Chico Mendes, no Acre, foi a primeira a ser criada, dois anos depois do assassinato do líder, abrangendo 46 seringais e 930 mil hectares de mata, e fazendo surgir políticas públicas específicas para o extrativismo. Hoje são 66 unidades de conservação desse tipo, não só na Amazônia – mas grande parte delas se concentra lá. “Ele tinha consciência de que a luta dele era difícil de ser vencida porque eram muitas forças contrárias. Mas era uma das poucas soluções para manter a Amazônia protegida”, afirma Mary.

O futuro a quem pertence?

Mas nem esses avanços são definitivos. Uma investida recente dos ruralistas ameaça várias dessas conquistas. Em meados de agosto, representantes da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) entregaram ao ministro da Justiça, Torquato Jardim, um ofício pedindo a suspensão de demarcação de terras em andamento e a revogação do decreto no 6.040/2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), em 2007.

“O fato de a bancada ruralista mandar hoje no Congresso afeta diretamente o legado do Chico, que está na questão dos territórios de uso sustentável. São muitos retrocessos principalmente nos dois últimos anos – embora os governos de esquerda também tenham deixado a desejar –, com dispositivos sendo tirados da gaveta em prejuízo das populações tradicionais, não só na Amazônia”, reforça Ângela Mendes, filha mais velha dessa figura emblemática e coordenadora do Comitê Chico Mendes, desde 2007.

O seringueiro Chico extrai látex (Foto: Divulgação)

Ângela ressalta casos como o projeto de lei que tenta transformar a reserva de Canavieiras (BA) numa Área de Proteção Ambiental para permitir atividades exploratórias de alto impacto que não são autorizadas em uma resex. Ela também cita a redução dos orçamentos de políticas públicas para as populações tradicionais e o risco de diminuição dos territórios extrativistas e indígenas em diferentes pontos do país. “Quando falamos no Brasil em questão territorial, continuamos sendo uma vergonha. Estamos atrasados desde o descobrimento. Só com políticas de reforma agrária, com justiça social e regularização fundiária conseguiríamos minimizar a violência no campo”, destaca Ângela.

O comitê que ela coordena promove anualmente um grande evento na semana de 15 a 22 de dezembro (datas de nascimento e morte do seringueiro e sindicalista) para manter acesa a chama do líder. Este ano, o foco será fazer um balanço dessas três décadas e a projeção dos próximos 30 anos. “Queremos produzir uma carta com a juventude. Estamos trabalhando para que essa galerinha acorde para manter a floresta em pé”, afirma Ângela. Afinal, se quem viveu aquele momento passou a respeitar a luta e as conquistas desse líder, o desafio com o passar do tempo é perpetuar o legado de Chico entre as novas gerações.


Providências a tomar

A Anistia Internacional e a Global Witness destacam como medidas primordiais para combater as mortes de defensores ambientais:

Combate às causas estruturais de risco
Garantindo que as comunidades possam fazer escolhas livres e sejam informadas sobre se e de que forma suas terras e recursos são utilizados.

Apoio e proteção aos defensores
Por meio de leis, políticas, práticas e recursos específicos, investigando ameaças, de forma a evitar que evoluam para um ataque ou assassinato. No caso do Brasil, o restabelecimento do Programa Nacional de Proteção a Defensores de Direitos Humanos, com abrangência em todos os estados, recursos financeiros e de pessoal adequados, e com a aprovação de seu marco legal definitivo.

Responsabilização dos abusos e crimes
A impunidade alimenta o ciclo de violência contra esses ativistas. Além de julgamento dos mandantes e executores responsáveis pelos ataques, deve-se garantir que aqueles que falharam em apoiar e proteger os defensores enfrentem as consequências da sua falta de ação.


Mortandade no campo

5 principais constatações do relatório sobre mortes entre os defensores da terra, da ONG Global Witness, de 2017

1) Pelo menos 207 defensores foram assassinados em 2017, ano com o maior número de mortes já registrado no mundo

2) O agronegócio foi o setor mais perigoso, superando pela primeira vez a mineração, com 46 defensores mortos protestando contra a forma como os bens que consumimos estão sendo produzidos

3) Houve mais massacres em 2017 do que nunca: a Global Witness documentou sete casos nos quais mais de quatro defensores foram mortos ao mesmo tempo

4) Quase 60% dos assassinatos registrados em 2017 ocorreram na América Latina

5) O Brasil teve o maior número de mortes já registrado em um ano em qualquer país (57), enquanto as Filipinas viram mais assassinatos em 2017 do que nunca em um país asiático (48)