Os arqueólogos sabem que as pessoas praticam a trepanação craniana (procedimento médico que envolve abrir um buraco no crânio) há milhares de anos. Eles encontraram evidências de que civilizações antigas em todo o mundo, da América do Sul à África e além, realizaram a cirurgia.

Agora, graças a uma escavação recente na antiga cidade de Megido, em Israel, há novas evidências de que um tipo específico de trepanação remonta pelo menos ao final da Idade do Bronze.

Rachel Kalisher, doutoranda do Instituto Joukowsky de Arqueologia e Mundo Antigo da Universidade Brown (EUA), conduziu uma análise dos restos mortais escavados de dois irmãos de classe alta que viveram em Megido por volta do século 15 a.C. Ela descobriu que não muito antes de um dos irmãos morrer, ele havia sofrido um tipo específico de cirurgia craniana chamada trepanação entalhada angular. O procedimento envolve cortar o couro cabeludo, usando um instrumento com uma borda chanfrada afiada para esculpir quatro linhas que se cruzam no crânio e usar alavanca para fazer um orifício em forma de quadrado.

Caso raro

Kalisher disse que a trepanação é o exemplo mais antigo desse tipo encontrado no Antigo Oriente Próximo.

“Temos evidências de que a trepanação tem sido esse tipo de cirurgia universal e difundida há milhares de anos”, disse Kalisher. “Mas no Oriente Próximo, não vemos isso com tanta frequência – há somente cerca de uma dúzia de exemplos de trepanação em toda a região. Minha esperança é que adicionar mais exemplos ao registro acadêmico aprofunde a compreensão de nosso campo sobre cuidados médicos e dinâmicas culturais em cidades antigas nesta área.”

A análise de Kalisher, escrita em colaboração com estudiosos em Nova York, Áustria e Israel, foi publicada na revista PLOS ONE.

Trepanação do Indivíduo 1. AB: Bordas ampliadas da trepanação, cada uma com uma barra de escala de 2 mm. Imagens capturadas com um microscópio estéreo Leica EZ4D. C: Todas as quatro arestas da trepanação, a barra de escala é de 1 cm. D: Localização reconstruída da trepanação na cabeça. Crédito: Kalisher et al., 2023, PLOS ONE, CC-BY 4.0 (creativecommons.org/licenses/by/4.0/)

Dois irmãos, de perto

Segundo Israel Finkelstein, coautor do estudo e diretor da Escola de Arqueologia e Culturas Marítimas da Universidade de Haifa (Israel), há 4 mil anos Megido controlava parte da Via Maris, uma importante rota terrestre que ligava Egito, Síria, Mesopotâmia e Anatólia. Como resultado, a cidade se tornou uma das cidades mais ricas e cosmopolitas da região por volta do século 19 a.C., com um impressionante horizonte de palácios, templos, fortificações e portões.

“É difícil exagerar a importância cultural e econômica de Megido no final da Idade do Bronze”, disse Finkelstein.

De acordo com Kalisher, os dois irmãos cujos ossos ela analisou vieram de uma área doméstica diretamente adjacente ao palácio da Idade do Bronze de Megido, sugerindo que os dois eram membros da elite da sociedade e possivelmente até da própria realeza. Muitos outros fatos confirmam isso: os irmãos foram enterrados com cerâmica cipriota e outros bens valiosos e, como demonstra a trepanação, eles receberam um tratamento que provavelmente não seria acessível à maioria dos cidadãos de Megido.

Esquerda: Trepanação com reajuste da peça craniana excisada. Direita: Ambas as peças existentes encontradas durante a análise. Crédito: Rachel Kalisher e outros

Doença grave

“Esses irmãos obviamente viviam com algumas circunstâncias patológicas bastante intensas que, nessa época, teriam sido difíceis de suportar sem riqueza e status”, disse Kalisher. “Se você é da elite, talvez não precise trabalhar tanto. Se você é da elite, talvez possa seguir uma dieta especial. Se você é da elite, talvez seja capaz de sobreviver a uma doença grave por mais tempo porque você tem acesso aos cuidados.”

Em sua análise, Kalisher detectou várias anormalidades esqueléticas em ambos os irmãos. O irmão mais velho tinha uma sutura craniana adicional e um molar extra em um canto da boca, sugerindo que ele pode ter tido uma síndrome congênita, como a displasia cleidocraniana. Os ossos de ambos os irmãos mostram evidências menores de anemia por deficiência de ferro sustentada na infância, o que pode ter afetado seu desenvolvimento.

Essas irregularidades de desenvolvimento podem explicar por que os irmãos morreram jovens, um na adolescência ou no início dos 20 anos e o outro entre os 20 e os 40 anos. Mas Kalisher disse que é mais provável que os dois tenham sucumbido a uma doença infecciosa. Um terço do esqueleto de um irmão, e metade do outro irmão, mostra porosidade, legiões e sinais de inflamação anterior na membrana que cobre os ossos – que juntos sugerem que eles tiveram casos sistêmicos e sustentados de uma doença infecciosa como tuberculose ou lepra.

Contexto bioarqueológico do estudo. A: A estrutura doméstica da Área H (H-15), com a Tumba 45 destacada em amarelo. B: Fotografia in situ da exposição precoce do contexto do sepultamento. C: Desenho composto com todas as camadas. Indivíduo 1 é azul, Indivíduo 2 é verde, restos de fauna são laranja. Crédito: Kalisher et al., 2023, PLOS ONE , CC-BY 4.0 (creativecommons.org/licenses/by/4.0/)

Possível hanseníase

Kalisher disse que, embora algumas evidências esqueléticas apontem para a hanseníase (lepra), é difícil deduzir casos desse problema usando apenas ossos. Atualmente, ela está trabalhando com pesquisadores do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva da Alemanha para conduzir análises de DNA de lesões específicas nos ossos. Se eles encontrarem DNA bacteriano compatível com a hanseníase, esses irmãos estarão entre os primeiros exemplos documentados dessa moléstia no mundo.

“A hanseníase pode se espalhar dentro das unidades familiares, não apenas por causa da proximidade, mas também porque sua suscetibilidade à doença é influenciada por sua paisagem genética”, disse Kalisher. “Ao mesmo tempo, a hanseníase é difícil de identificar porque afeta os ossos em estágios, o que pode não acontecer na mesma ordem ou com a mesma gravidade para todos. É difícil para nós dizer com certeza se esses irmãos tiveram hanseníase ou alguma outra doença infecciosa.”

Também é difícil saber, disse Kalisher, o que levou um irmão a se submeter a uma cirurgia craniana – a doença, as condições congênitas ou outra coisa. Mas existe algo que ela sabe: se a trepanação com entalhe angular foi feita para mantê-lo vivo, não teve sucesso. Ele morreu logo após a cirurgia – em dias, horas ou talvez até minutos.

Escavando na história médica

Apesar de todas as evidências de trepanação descobertas nos últimos 200 anos, disse Kalisher, ainda existe muito que os arqueólogos não sabem. Não está claro, por exemplo, por que algumas trepanações são redondas – sugerindo o uso de algum tipo de furadeira analógica – e algumas são quadradas ou triangulares. Também não está claro o quão comum o procedimento era em cada região, ou o que os povos antigos estavam tentando tratar. (Hoje, os médicos realizam um procedimento semelhante, chamado craniotomia, para aliviar a pressão no cérebro.) Kalisher está desenvolvendo um projeto de pesquisa de acompanhamento que investigará a trepanação em várias regiões e períodos de tempo, com o qual ela espera lançar mais luz sobre práticas da medicina antiga.

“Você tem de estar em um lugar muito terrível para ter um buraco na cabeça”, disse Kalisher. “Estou interessada no que podemos aprender olhando a literatura científica para cada exemplo de trepanação na Antiguidade, comparando e contrastando as circunstâncias de cada pessoa que fez a cirurgia.”

Além de enriquecer a compreensão dos colegas sobre as primeiras trepanações, Kalisher disse que espera que sua análise também mostre ao público em geral que as sociedades antigas não viviam necessariamente de acordo com os princípios da “sobrevivência do mais apto”, como muitos podem imaginar.

“Na Antiguidade, havia muito mais tolerância e muito mais cuidado do que as pessoas imaginam”, disse Kalisher. “Temos evidências literalmente desde a época dos neandertais de que as pessoas cuidaram umas das outras, mesmo em circunstâncias desafiadoras. Não estou tentando dizer que tudo era kumbaya (chamado a Deus) – havia divisões baseadas em sexo e classe. Mas no passado, as pessoas ainda eram pessoas.”