Dieta da saúde planetária pode combater as mudanças climáticas e salvar 15 milhões de vidas por ano. No entanto, ela enfrenta resistência com a propagação de fake news.Uma dieta saudável, não só para humanos, mas também para o planeta, incluiria um cardápio variado e rico em nozes, legumes, grãos integrais, frutas e verduras e com menos carne, lacticínios e açúcar. Essa é conclusão da Comissão EAT-Lancet, um órgão científico independente que trabalha com a influente revista médica britânica.

O grupo apresentou nesta sexta-feira (03/10) uma atualização de seu relatório divulgado em 2019 sobre dietas saudáveis que também são benéficas para o meio ambiente. “Os sistemas alimentares geram cerca de 30% das emissões globais de gases do efeito estufa”, destaca Johan Rockström, copresidente da comissão e diretor do Instituto Potsdam para Pesquisa de Impacto Climático.

Rockström ressalta que novas pesquisas realizadas em mais de 35 países mostram que incluir alimentos saudáveis nas diretrizes alimentares, combater a perda e o desperdício de alimentos, escolher produtos locais e adotar práticas agrícolas sustentáveis podem reduzir o estresse ambiental e cortar essas emissões em mais da metade, além de prevenir até 15 milhões de mortes prematuras por ano.

“Unir as últimas descobertas científicas sobre saúde e clima mostra que o colocamos no nosso prato pode salvar milhões de vidas, cortar bilhões de toneladas de emissões, interromper a perda de biodiversidade e criar um sistema alimentar mais justo”, pontua.

Apesar da ampla aceitação dessa “dieta da saúde planetária”, essa mensagem não foi recebida nas comunidades online dedicadas a promover dietas a base de carne como naturais, essenciais e ecologicamente corretas. O relatório original, publicado em 2019, enfrentou uma enxurrada de desinformação nas redes sociais, com a propagação de conteúdo enganoso e tendencioso que desacreditava as descobertas.

Campanha coordenada

A plataforma de reportagem especializada no clima DeSmog publicou em abril um documento que parecia atribuir a reação negativa à consultoria global de relações públicas Red Flag, que representa a indústria da carne e de laticínios. A DW contatou a Red Flag sobre a acusações, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem.

“A comida é algo que conecta as pessoas. Todos têm uma conexão muito pessoal com a comida. Se você apela para essa agenda do individualismo, pode realmente provocar e motivar as pessoas”, avalia Maddy Haughtin-Boakes, da Fundação Mudando Mercados, uma ONG holandesa que apoia soluções que beneficiam a sociedade e o meio ambiente.

Uma investigação da Fundação Mudando Mercados revelou uma campanha coordenada para desacreditar o relatório divulgado em 2019, que contou com a participação de cientistas, médicos e influenciadores ligados à indústria da carne. Nessa ação, o documento foi classificado como “perigoso, elitista e anticientífico”.

“Na época, grande parte da reação negativa foi apresentada como orgânica. Hoje, sabemos que ela não foi orgânica”, acrescenta Haughtin-Boakes.

Para essa ação coordenada contra o relatório, influenciadores marcavam e compartilhavam conteúdos entre si, usando palavras e hashtags semelhantes ou idênticos, para promover os supostos benefícios da carne para a saúde e para o meio ambiente.

Haughtin-Boakes avalia que, diante da instabilidade geopolítica e da alta dos preços nos alimentos, a atualização do documento divulgada nesta sexta também deverá ser alvo de ataques nas redes. Muitos dos que promoveram a campanha em 2019 continuam ativos, e alguns com um alcance ainda maior.

“A promoção de dietas carnívoras se tornou popular agora”, afirma Haughtin-Boakes, destacando a influência da machosfera nesse cenário e do movimento Maga nos EUA, de Donald Trump. “Globalmente, há esse boom de proteínas e a ideia de que você precisa consumir grandes quantidades de carne e proteína animal para sua saúde.”

Redes sociais e IA

Segundo Haughtin-Boakes, o enfraquecimento de unidades de verificação de fatos e das salvaguardas contra informações enganosas nas plataformas de redes sociais, como o X, Instagram e Facebook, no último ano ajudaram a espalhar a desinformação. O surgimento de ferramentas de inteligência artificial (IA) que impulsionaram a divulgação de notícias falsas e vídeos e imagens de deepfake reforçaram esse cenário.

Em um artigo do Grupo de Estudos Geopolíticos, baseado em Paris, o sociólogo Jose Henrique Bortoluci e Emmanuel Guerin, diretor executivo para Políticas Globais da Fundação Europeia do Clima, afirmaram que a relativa liberdade das redes sociais fomentou um ambiente propício à desinformação climática.

“Indivíduos oportunistas aproveitam esse ambiente para gerar ceticismo e espalhar desinformação. Eles dominaram a arte de imitar ‘especialistas’ ou de desacreditá-los, exemplificado pelo surgimento de pseudoespecialistas e grupos de estudos voltados a desacreditar a ciência climática”, escreveram em julho.

À DW, Bortoluci defendeu a regulamentação de redes sociais, assim como já ocorre com os meios de comunicação e a publicidade. Ele pontou que as plataformas precisam ser corresponsabilizadas para enfrentar esse problema.

Recuperando a narrativa

Rockström acredita que a atualização do relatório, apresentada na sexta, está preparado para enfrentar o novo ataque com sua avaliação científica global rigorosa. “Não estamos ditando nenhum tipo específico de dieta única para todos”, acrescenta, rebatendo uma interpretação equivocada comum do relatório de 2019.

Walter C. Willett, professor de epidemiologia e nutrição na Escola de Saúde Pública da Harvard T.H. Chan, em Boston, destacou que a dieta da saúde planetária é semelhante a muitas dietas tradicionais ao redor do mundo.

Exemplos desse plano alimentar saudável são exibidos no site do relatório em uma série de imagens, segundo ele – uma aparente tentativa de se conectar com o público e recuperar o que Bortoluci e Guerin chamaram de “narrativa emocional” sequestrada pela desinformação.

“As imagens mostram que não estamos falando de uma dieta de privação”, acrescenta Willett. “Estamos falando de algo que pode ser saboroso, inspirador e saudável.”