João Máximo, jornalista de 87 anos, esmiúça o tamanho do Rei do Futebol dentro e fora de campo. Tendo seguido os passos do astro desde o início da carreira, o cronista reivindica a soberania de Pelé no panteão do futebolA repercussão da morte de Pelé, aclamado como Rei do Futebol nas capas de jornais mundo afora, reafirmou a unanimidade em torno de sua coroação como o maior jogador de todos os tempos.

O título vinha sendo questionado após o recente triunfo de Lionel Messi. Ao liderar a seleção argentina na conquista da Copa do Mundo do Catar, o argentino obteve a afirmação que lhe faltava, tendo se sobressaído em uma era de grande competitividade física e técnica do futebol.

Trata-se de uma discussão em aberto, que esbarra na dificuldade de comparar atletas que atuaram em épocas muito distintas. Além das características singulares do futebol no tempo de Pelé, Maradona e Messi, a distância histórica para o período de atividade do Rei compromete uma análise igualitária, uma vez que os registros em imagem são muito mais escassos no caso do brasileiro.

Nesse sentido, o olhar daqueles que testemunharam diferentes gerações de craques em ação adquire uma importância preciosa. O jornalista João Máximo, de 87 anos, assistiu aos primeiros passos de Pelé, ainda como fã de futebol. No início dos anos 1960, como cronista esportivo, passou a acompanhar ainda mais de perto.

“O Pelé tinha todas as virtudes que um atacante tem que ter”, recorda. “Tirar a bola dele podia ser quase impossível. A característica do Pelé era fazer gol de todas as maneiras.”

Embora trate a “arte” do Rei como próxima da perfeição técnica, Máximo rechaça o valor das comparações entre atletas de características e épocas tão diversas no futebol. No entanto, em entrevista à DW Brasil, o escritor avalia que a importância assumida por Pelé é incomparável à de outros craques, por ter se tornado o rosto de seu país e do próprio esporte, em si.

“Jogadores como Messi, Maradona, Cruijff e Beckenbauer são grandes artistas da bola, mas nenhum deles representa, para o seu país, para a história do futebol, o papel irretocável do Pelé. Inclusive, eles próprios reconhecem isso. Esses grandes craques se referem ao Pelé realmente como uma entidade, uma instituição muito acima e muito além do que eles poderiam imaginar para si próprios”, constata.

Ainda que tenha acompanhado épocas gloriosas do futebol, Máximo não se prende a um olhar saudosista sobre o jogo. O experiente jornalista fala com deslumbre sobre a recente final da Copa, encantado com o talento de Messi e o francês Kylian Mbappé. De todo modo, o fascínio despertado pelo Rei parece inigualável.

“A presença dele, e o que ele fez ao estar no mundo e ter vivido, foi um papel destinado ao Pelé. Se há deuses do futebol, como nós, cronistas esportivos, gostamos de dizer, eles elegeram o Pelé como seu representante aqui”, afirma.

DW Brasil: Tendo acompanhado praticamente toda a carreira do Pelé, como você classifica o tamanho do Pelé, como atleta e figura pública?

João Máximo: O Brasil sempre teve, em relação à sua grandeza de país imenso, muito pouco do que se orgulhar verdadeiramente. Eu me lembro que, durante a Copa de 50, nosso orgulho estava ligado à capacidade que teríamos de construir, com dinheiro público, o maior estádio do mundo. Nós precisávamos de um estádio grande, para que fosse o local e, ao mesmo tempo, testemunha da glória brasileira maior, que era ganhar aquela Copa do Mundo. Era assim que nós, garotos de 15 anos, como eu naquela altura, víamos a Copa do Mundo. Aquele traumatismo, encarado como uma tragédia nacional, não era, simplesmente, uma derrota do time da seleção representativa do Brasil para o time do Uruguai.

Com o passar do tempo, a Copa do Mundo continuou sendo um símbolo da representação do Brasil como grande força do futebol. O esporte virou uma espécie de identidade nacional, de símbolo maior do Brasil. É o único espaço em que o Brasil podia dizer: somos os melhores do mundo. É uma coisa que o brasileiro tem dentro dele, talvez por falta de orgulho em outras áreas. O Nelson Rodrigues chamava isso de complexo de vira-lata. O brasileiro se achava muito ruim em relação ao resto do mundo, nas outras coisas, mas sempre se achava um gigante em matéria de futebol.

Tem um ser humano que simboliza tudo isso de maneira perfeita. O único lugar onde essa tese brasileira de grandeza não é abalada, nem sequer discutida, é em relação ao Pelé. O Pelé simboliza essa grandeza que o Brasil não teve em outros setores da sua vida. Ele é mais do que um símbolo, é a própria realidade disso, porque o Pelé existiu. O Pelé não foi um sonho. A perfeição que se cobrava de toda uma seleção brasileira acabou se encontrando no Pelé.

Em que ele se sobressaiu tanto, jogando por um país que é celeiro de craques?

O Brasil é um país que tem produzido excelentes jogadores, de nível mundial. Mesmo na época do Pelé, houve o Garrincha, Didi, Tostão, Gerson, grandes jogadores. Mas nenhum deles teve a sua arte, a sua técnica tão irretocável, tão firme e desafiando os críticos mais rigorosos do mundo, como o Pelé. Ele realiza isso e, ao mesmo tempo, vira essa espécie de símbolo. Lá fora, quando se fala do Brasil, é Pelé. Se tem uma pessoa, uma figura do Brasil que parece ser lenda e, no entanto, é uma realidade, essa figura é o Pelé.

Isso veio a combinar um pouco do sonho brasileiro, ou do desejo brasileiro de ser o maior do mundo, que acabou se realizando em algumas Copas. Mas a Copa do Mundo passa, na Copa seguinte outro país leva a taça. E é bom que assim seja, porque valoriza a taça, ela se alterna, e quem está melhor no momento, ganha. Mas as seleções brasileiras que foram as maiores do mundo deixam de ser depois de quatro anos. O Pelé, não, ele continuou sendo o melhor do mundo sempre. Para o brasileiro que gosta de futebol, que é o meu caso, é como se a história do país fosse escrita por meio do do futebol e de um personagem único, que é o Pelé.

A presença dele, e o que ele fez ao estar no mundo e ter vivido, foi um papel destinado ao Pelé. Se há deuses do futebol, como nós, cronistas esportivos, gostamos de dizer, eles elegeram o Pelé como seu representante aqui. É claro, há jogadores como Messi, Maradona, Cruijff, Beckenbauer – que eu vi jogar um futebol maravilhoso na Inglaterra, aos 20 anos. São grandes artistas da bola, mas nenhum deles representa, para o seu país, para a história do futebol, o papel irretocável do Pelé. Inclusive, eles próprios reconhecem isso. Esses grandes craques se referem ao Pelé realmente como uma entidade, uma instituição muito acima e muito além do que eles poderiam imaginar para si próprios.

Pelé se aposentou dos gramados há 45 anos. As gerações mais recentes o conhecem basicamente por vídeos de gols e melhores momentos, mas há pouco acesso a jogos dele na íntegra, sobretudo no início da carreira. O que mais chamava atenção ao vê-lo jogar, no detalhe?

O filme lançado sobre o Pelé pela Netflix, em 2021, reúne o melhor conjunto de imagens dele. O Pelé tinha todas as virtudes que um atacante tem que ter. A sua posição diante do gol era tão fatal, tão inevitável, que quando não aconteceu, tornou-se um grande momento em sua carreira. Ele ficou famoso não só pelos gols que marcou, mas pelos gols que ele não fez também. Um foi o chute que ele tentou do meio de campo, surpreendendo o goleiro. Outro foi o famoso drible sem bola que ele dá no goleiro uruguaio, na semifinal da Copa de 1970. Ele não toca na bola, deixa ela passar e sai pelo outro lado. O Mazurkiewicz, que era um grande goleiro, fica no meio sem saber o que tinha acontecido. Por sorte dele, a bola não entrou. Teve ainda a cabeçada que ele deu no jogo contra a Inglaterra, para grande defesa do goleiro Gordon Banks, na Copa de 1970.

Médicos da época atestaram que a estrutura física do Pelé era acima da média. Não apenas a musculatura, mas o equilíbrio do corpo era perfeito. Ele não caía se não fosse derrubado. Ele tinha muita velocidade e o que hoje se chama de tempo de bola: saber onde a bola vai cair, para se antecipar ao zagueiro adversário e ao goleiro. Ele fazia isso com perfeição. No futebol de hoje, Pelé teria que mudar muito as características dele. O jogo do Messi, por exemplo, é um jogo coletivo. Embora ele seja capaz de um drible espetacular e de um gol maravilhoso, a perfeição dele reside na precisão do passe. Ele vem carregando a bola, vira o corpo para onde quiser e dá o passe para onde quiser.

O Pelé não era um jogador de passe. O máximo que ele fazia era uma triangulação na meia-lua da área, muito com o Coutinho, depois com o Vavá. Ele era um jogador de passo curto, já para acabar com a bola dentro do gol. Não era a dele vir trocando passes. Pelé tinha uma velocidade extraordinária, e uma capacidade de levar a bola presa aos pés como ele queria, para concluir com uma finalização perfeita. Ele praticamente se bastava, se é que isso é possível no futebol. Pelé era um jogador com uma linha de individualidade brilhante. O Garrincha também era um individualista. Aliás, todos os atacantes brasileiros. O jogo de passe para eles era circunstancial: se desse, eles iam em frente sozinhos; se não desse, aí eles faziam o passe. A geração do Tostão é que começa a valorizar um pouco esse jogo coletivo, cuja inspiração seria atribuída à Holanda do Cruijff, em 1974, mas que seria uma evolução natural do futebol. O Pelé era esse individualista, mas um individualista brilhante. Tirar a bola dele podia ser quase impossível. A característica do Pelé era fazer gol de todas as maneiras.

A recente conquista da Copa do Mundo pela Argentina, liderada por Lionel Messi, incitou debates sobre a hipótese de que o craque contemporâneo ter ultrapassado o brasileiro, em uma era de maior competitividade do futebol. O que você pensa a esse respeito?

Eu me sinto uma pessoa feliz por gostar tanto de futebol, sua beleza, seu jogo de emoções, como essa final de Copa do Mundo deixou claro: tantas emoções em duas horas de partida. Houve alternâncias, vitórias aparentemente garantidas e logo desmentidas, um jogo fantástico, disputado com talento enorme. Eu gosto tanto do futebol, que me reservo um pouco ao direito de não me meter nessas discussões. Quem foi melhor, Pelé ou Garrincha? Messi ou Cristiano Ronaldo? O futebol me dá o prazer de ter visto a Argentina ser campeã com o Messi, um prazer que eu comparo ao que talvez tivesse tido se o Brasil tivesse ganho. Eu vi ali o maior jogador do século 21 ser premiado. É como se o futebol fosse uma espécie de religião onde eu não destaco os santos e nem os deuses que possa ter. Todos eles estão ali para me fazer feliz. O futebol tem esse poder.

Nessa discussão de quem foi melhor, eu sei o que o Pelé foi para o Brasil. Agora, a arte, a técnica dele, é tão refinada, tão próximas da perfeição e da beleza que o futebol propicia, que eu não gosto de dizer que um foi pior que o outro. Não é que eu fuja desse debate, mas praticamente não me fascina. O futebol me permite gostar do Messi e do Mbappé. São diferentes, dois gênios, dois craques, e ambos me dão prazer em vê-los jogar. Eu vi o Messi colocar a Argentina em vantagem na final, e o Mbappé, em dois, três minutos, virar completamente a realidade do jogo. Como eu posso dizer que o Messi é pior que ele? Deus me livre! Eu não consigo fazer isso. Discutir quem foi o melhor do mundo na temporada, o melhor na Copa, eu até aceito. Agora, isso não é um julgamento definitivo. Maradona ou o Messi? O futebol argentino deve se orgulhar de ter um grande futebol, a ponto de serem capazes de produzir não só um Maradona, mas Messi logo depois.

Ao longo desses anos como jornalista, eu acompanhei as mudanças do futebol. Alguns colegas mais próximos da minha idade dizem que o futebol piorou, que futebol bom era naquele tempo. Eu não penso assim. O futebol tem o encanto de 2022. A verdade do futebol é que está aí, e ela é bonita, só que de um jeito diferente do que era antigamente. Hoje, os atletas são mais bem preparados fisicamente, e capazes de fazer o que os jogadores não faziam há 30, 40 anos atrás. Eu me dou por sorte de saber acompanhar essa evolução. Há 30 anos, o Messi não jogaria assim, nem teria a capacidade que tem hoje.