A cerca de 100 quilômetros das frentes de batalha, hospital de Dnipro trata de vítimas graves de explosões, disparos, queda de destroços. Mas, apesar da tensão quase insuportável, poucos médicos deixaram seus postos.”É como se, de repente, a gente tivesse caído neste filme de terror e não tem como escapar. Agora ele é a sua vida. Não é algo que dê para descrever com palavras, é preciso ver com os próprios olhos”, relata Valentyna Lisnycha, que se ocupa de alguns dos pacientes mais graves que produz a guerra da Rússia contra a Ucrânia.

Ela dirige uma unidade traumatológica do Hospital Mechnikov, de Dnipro, para onde vão os pacientes com feridas infeccionadas. É cedo de manhã na enfermaria, cirurgiões e anestesistas se agrupam em torno das camas.

Devido aos frequentes ataques de mísseis russos, há muitas vítimas civis, porém a grande maioria é de soldados dos campos de batalhas próximos, no sul e leste da Ucrânia, a apenas uma centena de quilômetros do estabelecimento.

Suas feridas foram causadas por balas, bombas ou a queda de destroços. Muitos mal podem se mover, conectados a aparatos de infusão intravenosa e monitores. Um médico para por alguns momentos para segurar a mão de um soldado, que responde com um sorriso quase imperceptível.

Ao lado de outra cama, uma enfermeira tenta compreender que tipo de doces seu paciente está pedindo. Ela promete cumprir o desejo e parte para concluir suas tarefas. Familiares dos internados já estão esperando do lado de fora pelo início do horário de visitas.

“Fábrica de sobrevivência”

Há 14 operações programadas para o dia, fora alguma emergência que apareça. O pessoal apelida o hospital “fábrica de sobrevivência”. Após tratamento inicial nos “pontos de estabilização” logo atrás do front, os soldados feridos são operados em Dnipro, sendo em seguida transferidos para dar espaço ao novo afluxo de pacientes.

Hoje é a vez de Andriy deixar Mechnikov. Enquanto a equipe de ambulância o pousa cuidadosamente numa maca, ele balbucia algo. “Este rapaz veio para nós inconsciente. Agora ele pelo menos está falando novamente”, comenta Lisnycha. Andriy ouve mal, e cada palavra é uma luta: “Só quero ir para casa para a minha mulher e os meus filhos”, diz lentamente.

É hora de Lisnycha se dirigir à sala de operações, de onde não sairá até tarde da noite. Seu próximo operando é o soldado de infantaria Nikita, prestes a passar pela primeira cirurgia em sua caixa toráxica. “A bala passou direto pelo meu colete à prova de bala e atravessou os meus pulmões”, ele conta.

A poucos metros, Vitaliy também espera para ser operado, e descreve algumas das armas de que precisou se defender, em sua estreita trincheira no front: “Primeiro chegam as bombas, depois os drones jogam granadas, e por último eles mandam os drones kamikaze atrás de você.” Quando ouviu um desses vindo em sua direção, só teve tempo de se encolher, antes que ele explodisse, ferindo-lhe as costas. Hoje os cirurgiões tentarão reconstituir seus músculos.

“Não é cinismo, é autoproteção”

As cirurgias de hoje foram bem, mas o turno de Valentyna Lisnycha está longe de terminar. De prontidão toda a noite, se for necessário ela volta à sala de operações. As noites são o período mais intenso para novas admissões da frente de batalha. Uma ambulância estaciona diante do hospital. Os paramédicos transportam um homem uniformizado na maca, inconsciente e coberto de queimaduras.

Outro soldado é trazido. Nas costas de sua mão, o pessoal do hospital escreveu um número: 24.356. A contagem começou em 24 de fevereiro de 2022, com o início da invasão russa em grande escala. E esse é apenas um dos grandes estabelecimentos que tratam dos feridos de guerra.

“Nós estamos todos esgotados”, queixa-se Lisnycha, “mas compreendemos que outros estão sofrendo mais.” Apesar de todo o estresse, poucos médicos deixaram seus postos desde que a guerra começou. Quase todos têm parentes próximos lutando nas linhas de frente.

“Deixamos de perguntar aos nossos pacientes como eles ficaram feridos”, admite a cirurgiã-chefe. “Não é que a gente não se importe. Mas é preciso manter uma certa distância da coisa toda. Não é cinismo, é autoproteção.”