Uma onça-pintada nadando no rio Negro, em um trecho a cerca de 27 quilômetros de Manaus, viralizou nas redes em outubro por mostrar o animal, fatigado, aceitando a ajuda de humanos, o que normalmente não faria. O felino, um macho com mais de 50 quilos, estava ferido e se agarrou a uma espécie de boia, puxada por uma corda e lançada por agentes da Companhia Ambiental Fluvial da PM. Era nítido seu esgotamento. Um dos olhos chamava atenção pelo edema. Descobriu-se depois que mais de 30 estilhaços de tiros de chumbinho estavam na cabeça e no corpo do animal.

Levada ao Centro de Acolhimento da Vida Silvestre, na capital amazonense, a onça passou por cirurgia de urgência. Temia-se que perdesse a visão. Seu tratamento e reabilitação prosseguiram no antigo zoológico do Tropical Hotel até que, após 40 dias do resgate, ela foi devolvida à natureza, saudável e com plena visão.

Esse é um caso em que o felino, o maior do continente, contou com a simpatia e o apoio das pessoas que compartilharam desejos de que a onça se recuperasse e retornasse para seu habitat. Embora imponha respeito por ser um carnívoro poderoso, ela é alvo frequente de ataques de quem não compreende que sua presença nas matas é sinal de equilíbrio na natureza.

Mas e nos ambientes urbanos? Elas estão aparecendo mais como sugere a imensa proliferação de vídeos na internet? Não é bem assim. “A Inteligência Artificial está atrapalhando muito. Há vídeos pipocando e muitos não são reais ou são de outros lugares ou nem são de onças”, diz Yara Barros, coordenadora executiva do Projeto Onças do Iguaçu, que desenvolve pesquisas e projetos de coexistência entre o felino e as comunidades da região, além de atuar para ampliar o engajamento da população com a preservação desse “grande gato”.

Entre os animais confundidos com a onça-pintada estão jaguatiricas e até mesmo bichanos domésticos, porém em ângulos capazes de enganar o olhar das pessoas. Há quem use vídeos de carnívoros de outros países, como leopardos, para atrair likes para seus perfis nas redes.

Diretor da ONG Panthera Brasil (que tem projetos que atuam no conflito entre humanos e felinos e na educação de comunidades locais, bem como desenvolve ações de conservação de habitats e presas), Ronaldo Morato reforça: “Estamos obtendo mais informações sobre onças com auxílio das redes sociais. Porém existem muitas fake news ou mesmos animais mostrados como sendo de diferentes regiões. Um vídeo de um casal de onças em Miranda (MS) rodou o mundo todo. Uma hora diziam que as onças foram filmadas no México, outra no Panamá, outra em São Paulo”, exemplifica ele, que se dedica ao estudo da onça-pintada desde 1992.

Há, sim, casos reais de animais adentrando cidades, mas porque desviaram sua rota e se perderam. Isso acontece especialmente com jovens machos e também com a onça parda, espécie que tem mais capacidade de se alimentar no ambiente urbano, afinal, pode sobreviver predando até roedores – o que é muito pouco para uma onça-pintada. Mas não há dúvida que esses animais preferem ficar longe do ambiente urbano. “Onça quer voltar para a mata. Ela só quer ser onça”, diz Yara.

O caso da morte do caseiro Jorge Avalo, de 60 anos, em Aquiduana (MS), que foi atacado em abril por um macho por volta de nove anos, despertou medos e até jogou contra a imagem da onça. Por outro lado, muitas pessoas entenderam que a situação é atípica. O animal foi capturado e demonstrou que não tem mais medo da presença humana, que é o comum. Por isso, o felino em questão precisa ficar em cativeiro. A provável razão desse comportamento é a prática de algo chamado ceva, quando as pessoas atraem a onça oferecendo comida.

Isso foi um horror mesmo. Uma vida se perdeu”, lamentou Lilian Rampin, coordenadora de operações do Onçafari, instituição que atua em frentes como pesquisa, preservação, educação e turismo ecológico. A tragédia provocou burburinhos nas redes, mas também gerou oportunidades para palestras sobre o comportamento desse grande felino e do perigo da ceva, um crime ambiental e um enorme risco para humanos.

Neste ano, foi realizado um encontro para abordar conflitos entre humanos e felinos e outras espécies selvagens que envolveu outras nações. O que se percebeu é que os índices de ataques de onças-pintadas a humanos são ínfimos. “É preciso ficar mais claro que elas são seres a nosso favor. Não são inimigas”, salientou Lilian.

Dia Nacional

A onça-pintada é considerada um símbolo da nossa biodiversidade. A espécie é encontrada pelo continente, mas cerca de 50% de sua população está no Brasil. Daí porque ela nos representa – e inclusive está na nota de R$ 50. Esse vínculo é celebrado no Dia Nacional da Onça-Pintada, a cada 29 de novembro, quando pesquisadores e conservacionistas buscam aumentar a conscientização sobre a necessidade de protegê-la. “Ela está na cosmologia indígena e tem um simbolismo cultural muito importante. A relação que temos com a espécie a gente precisa sempre reforçar, consolidar para um lado positivo”, ressalta Morato.

Ele reforça que hoje, existem muitos métodos para evitar que essa espécie ataque rebanhos. Com isso, não se justifica a perseguição ao animal. Além disso, pontua, há uma aceitação cada vez maior das pessoas da convivência com as onças.

Apesar disso, o quadro de preservação é delicado. Na análise da conservação no Brasil inteiro, a situação é de vulnerabilidade para a extinção. Há três classificações desse risco: vulnerável, em perigo e criticamente em perigo. Existem duas grandes populações de onças no Brasil: na Amazônia e no Pantanal, onde elas estão teoricamente seguras. Os grupos que estão criticamente em perigo são os animais que vivem na caatinga e na Mata Atlântica. As que vivem no Cerrado estão em perigo por conta da expansão da atividade agrícola. Já na região dos Pampas elas não existem mais. “A chance de você encontrar uma onça lá ou um tiranossauro rex é a mesma”, comenta Lilian. Portanto, diante desses cenários, ainda são necessários planos e para conservamos a espécie.

Uma das formas que ganha peso é o investimento nos corredores. Isso quer dizer comprar terras para conectar territórios que viabilizem o encontro de animais diferentes e o cruzamento que afastem o risco de consanguinidade. No Onçafari, esse problema foi percebido em 2018, durante um trabalho feito na Amazônia para reintroduzir animais na natureza. Nos sobrevoos pela região, os biólogos perceberam como as regiões devastadas ou cortadas por estradas bloqueavam esses acessos aos felinos. “Dissemos: ‘vamos começar a comprar propriedades’. E isso virou estratégico para nós”, contou Lilian.

Um dos mais famosos é o Corredor da Onça, no rio Araguaia. Em Foz do Iguaçu, o Corredor Verde, que conecta animais do Brasil e da Argentina, tem assegurado o aumento das espécies na região. Yara comemora o crescimento da população de onças que dobrou nos últimos 15 anos. Uma ação criado pelo Projeto Onças do Iguaçu comemora o nascimento de dois animais, registrados pelas câmeras que circundam a região. Apenas de um filhote foi possível descobrir o sexo. Foi criado um concurso de votação popular para definir o nome do machinho: as opções, de origem guarani, são Arandu (sábio), Ñandu (vento forte) e Taupá (cacique do rio Iguaçu). O público descobrirá o preferido no dia 29, dia de valorizar estes felinos extraordinários.