Há muito tempo louvado como fonte de nutrientes, minerais e vitaminas, o leite está sob bombardeio crítico. Cientistas enfrentam interesses do mercado e de consumidores para mostrar que as iguarias lácteas são motivo de cuidados com a saúde.

Falar de leite já foi bem mais simples. Por muito tempo o consumo do produto foi ponto passivo na nutrição. Atualmente é tema polêmico. Cientistas e médicos questionam as benesses desse hábito entranhado. O debate é acirrado, principalmente, por envolver os interesses de um mercado global e por afetar paixões gastronômicas. Se a discussão girasse em torno da alface, os ânimos não se exaltariam da mesma forma. Deixar de comer alface seria um alívio para muita gente. Já abrir mão de queijos, iogurtes,  sorvetes ou leite – seja de vaca, cabra, búfala ou ovelha – beira o sacrifício. 

O consumo do leite surgiu há 10 mil anos, no período Neolítico, quando a espécie humana deixou de ser nômade e se fixou na terra, desenvolvendo a agricultura e a criação de animais para conquistar segurança alimentar. Desde então, o leite materno passou a ser substituído, já nos primeiros meses de vida, pelo de outros mamíferos. Mas, após o desmame, a maioria das pessoas – assim como os mamíferos em geral – continua a apresentar uma redução drástica da lactase, a enzima que digere a lactose, o açúcar natural do leite. 

Causa de diarreia, dor abdominal e inchaço, a intolerância à lactose varia de acordo com a raça e a etnia. Sua prevalência pode ser explicada por um gene recessivo, pela dieta tradicional e pelas leis da seleção natural. Nos extremos da lista estão os povos asiáticos (mais de 95% são intolerantes ao leite) e os europeus do norte, com prevalência de apenas 2% a 15%. Hispânicos e negros também apresentam taxas altas: 50% a 80% e 60% a 80%, respectivamente. Os dados são da pesquisa Genetics and Epidemiology of Adult-Type Hypolactasia, liderada pelo finlandês Timo Sahi, em 1994, que abrangeu adultos do mundo todo e é tomada como parâmetro até hoje (veja quadro na outra página). 

“Diversos problemas de saúde têm razões de ordem imunológica. O sistema imunológico da espécie humana não aguenta uma nutrição que não lhe é destinada pela natureza”, adverte Jean-Pierre Poinsignon, médico e pesquisador francês, autor de Rhumathismes: et si votre alimentation était culpable?.

O livro traz uma longa lista de doenças respiratórias, osteoarticulares, digestivas, autoimunes e cutâneas – da flatulência a acne, otites, artrites e asma – derivadas do consumo do leite animal. Para o autor, o único leite adaptado à espécie humana é o materno, e nenhum mamífero adulto consome o leite de sua mãe. A tese de Poinsignon é simples: somos vítimas das indústrias alimentícia e farmacêutica e da propaganda. Você quer curar ou prevenir doenças? Mude de dieta.
 

Commodity global
Segundo Poinsignon, a osteoporose, grande alvo das campanhas a favor do consumo de laticínios ricos em cálcio, não está ligada à falta do mineral. “Essa é uma fábula escandalosa fabricada pelo lobby da indústria de laticínios e por peritos médicos alimentados por publicações financiadas pelo interesse mercantil. É só lembrar que há um número enorme de pessoas com osteoporose nos países com alto consumo de leite e derivados.” Japão e China têm algumas das taxas mundiais mais baixas da doença e estão entre os menores consumidores de produtos lácteos. Os chineses, no entanto, vêm ocidentalizando seus hábitos. De olho nesse gigantesco mercado que desponta, a suíça Nestlé está instalando um grande centro de produção no país. Dados do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos revelam que a produção chinesa de leite já saltou de 9,19 bilhões de litros em 2000 para 33,70 bilhões de litros em 2012.

Considerando o panorama globalizado, em que mais gente vive do mercado de laticínios do que sofre por causa desses produtos, o norte-americano Robert Cohen escreveu o livro-denúncia Leite: Alimento ou Veneno? (Editora Ground, 2005). Cohen estudou psicologia fisiológica, psicobiologia, genética e endocrinologia para alertar que a bucólica imagem publicitária da vaquinha pastando em um campo verde nada tem a ver com a realidade de confi namento dos animais e a dieta que recebem. 

Na maior parte das vezes, o gado é criado à base de esteroides, hormônios e antibióticos, e alimentado com cultivos tratados com pesticidas ou geneticamente modifi cados, para que cresça mais rápido e produza mais leite. Parte desses insumos químicos é transferida ao leite. Cohen ressalta que no processo de pasteurização (fervura do leite), criado para evitar a transmissão de doenças, são destruídas proteínas e enzimas como a fosfatase, que ajudam no processo digestivo e na absorção do cálcio. Ou seja, o líquido que chega à mesa pouco pode oferecer do que se espera dele.

Biofortifificação
Luiz Carlos Roma Júnior, pesquisador da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA), relativiza a questão. “É preciso tomar cuidado com o extremismo. O excesso ou a falta de leite, assim como de qualquer outra coisa, pode trazer problemas. O alimento é muito importante para as pontas da vida, a infância e a velhice.” Mas concorda com as críticas sobre a forma como as vacas são tratadas, às vezes por métodos robóticos. “O leite é extraído, e não tirado, sem nenhum cuidado com a saúde do animal.” 

Roma não só acredita no valor nutritivo do leite como participa do esforço da APTA e da Universidade de São Paulo (USP) para desenvolver um leite biofortificado e funcional. A iniciativa, cujos primeiros resultados foram divulgados em novembro de 2013, aposta na alimentação diferenciada da vaca para potencializar o leite. Os animais foram divididos em grupos que receberam alimentação normal, ração com dose extra de selênio, com vitamina E e com óleo de girassol (para alterar o perfil da gordura do leite). Cada  grupo de vacas produziu um tipo de leite biofortificado. “O leite costuma ser fortificado na pós-produção e manipulado para receber vitaminas e ferro, processo mais caro e menos vantajoso para a saúde do consumidor”, diz Karina Pfrimer, pesquisadora da USP envolvida no estudo. “Nós atuamos antes, na pré-produção.” 

O alimento funcional foi testado em crianças e idosos durante 12 semanas. Os 90 alunos da escola C.A.I.C. Professora Stela Stefanini Bacci, em Casa Branca (SP), envolvidos apresentaram aumento de 160% no nível de selênio no sangue e de 33% no de vitamina E – elementos que agem como antioxidantes, protegendo as células dos radicais livres que aceleram o envelhecimento e desencadeiam câncer. Já os 130 residentes na Casa do Vovô, de Ribeirão Preto (SP), registraram queda de 16% na quantidade de LDL (colesterol ruim). Resultados positivos também foram obtidos entre os próprios animais, melhorando a produção de leite: 30% menos ocorrências de mastite (inflamação da glândula mamária) nas vacas. 

Apoio oficial 
Aclamado como fonte nutricional de cálcio, potássio, fósforo, magnésio, zinco, proteínas, vitaminas A, D, B12 e riboflavina, o leite figura nos Guias Alimentares de inúmeros países, principalmente ocidentais, e da Organização Mundial da Saúde (OMS). O Ministério da Saúde do Brasil recomenda o consumo de três porções diárias de leite (pasteurizado e preferentemente desnatado) ou de derivados, mas a média nacional de consumo de laticínios está abaixo disso: 43,7 kg per capita por ano, menos de um copo por dia. 

Para Jean-Pierre Poinsignon, ao estimular o consumo de leite, o Brasil reproduz os erros nutricionais que a França cometeu nos anos 1950, com consequências sanitárias lamentáveis: obesidade mórbida, diabete, câncer, doenças cardiovasculares e autoimunes, etc. O pesquisador é duro quanto aos processos de fortificação da bebida. “Um veneno ao qual se adicionam bons ingredientes continua a ser um veneno”, diz. Na sua visão, deveríamos retornar às dietas do passado, com frutas cruas, legumes pouco cozidos e proteínas animais. 

“Acho complicado colocar o leite como vilão”, rebate Karina Pfrimer. “Assim como não existe solução milagrosa, não há um único culpado.” Só há consenso em um ponto: “O mais importante é, sem dúvida, manter um estilo de vida saudável, com alimentação equilibrada e muita atividade física”, afirma a pesquisadora. 

A controvérsia láctea vai continuar, enquanto a alface insossa permanece indiscutida como fonte de alimentação saudável. Seja com ou sem laticínios.