16/12/2021 - 7:00
Desde criança, Rodolfo Nogueira tem paixão por dinossauros. Aprender desenho lhe concedeu algo semelhante a um superpoder: trazer os animais do passado de volta à vida. Ou quase.
Em sua terra natal – Uberaba, no Triângulo Mineiro –, com frequência escavações para obras de construção civil revelam fósseis. Ali, com réplicas de dinossauros imaginados a partir de muito conhecimento científico, executadas com precisão, o paleoartista vem contribuindo para transformar praças em geossítios, construindo o princípio de um geoparque.
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Em novembro, Nogueira ganhou um prestigioso prêmio internacional dedicado à sua especialidade, o Lanzendorf National Geographic Paleoart Prize, na categoria Ilustração 2D. Foi a terceira vez. Ele já tinha recebido o mesmo prêmio em 2015, na categoria Ilustração científica, e em 2018 por Animação científica. Aos 35 anos já ganhou 17 prêmios, 13 deles internacionais. Ele contou a Pesquisa Fapesp como aprendeu a conciliar o amor pela paleontologia com a arte, desenvolvendo um método que envolve inferir como era um animal que viveu há milhões de anos, às vezes com base em não mais do que uma garra.
O prêmio que você ganhou recentemente foi concedido por um desenho específico?
Sim, a imagem representa o amanhecer da era dos dinossauros há 230 milhões de anos no sul do Brasil, mostrando dois dos dinossauros mais antigos já registrados, Saturnalia e Pampadromaeus. Foi um desenho que fiz para o livro vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro infantil e juvenil em 2018, O Brasil dos dinossauros, pela editora Marte, em parceria com o paleontólogo Luiz Eduardo Anelli, da USP [Universidade de São Paulo]. A premiação é organizada pela maior associação de paleontologia do mundo, a Sociedade de Paleontologia de Vertebrados, dos Estados Unidos, com aporte da National Geographic Society. Ele representa um marco para a minha carreira, mas ouso dizer que ajuda a consolidar nossa ciência no cenário mundial porque toda a comunidade paleontológica internacional está vendo uma ilustração que representa o surgimento dos dinossauros em uma paisagem brasileira, com animais brasileiros, ilustrada por um brasileiro, como resultado de pesquisa brasileira.
Isso que você faz é o sonho de muita criança, e foi o seu. Como virou realidade?
O paleontólogo Llewellyn Ivor Price (1905-1980), que era um gaúcho filho de norte-americanos, voltou ao Brasil na década de 1930 e, em Uberaba, se deparou com crianças jogando bocha com ovo de dinossauro. Ele começou a explorar e enviava os fósseis para o Rio de Janeiro, até que em 1993 foi fundado um museu no bairro rural chamado Peirópolis, a 20 quilômetros da minha cidade. Eu tinha 6 anos e fui de carona em uma excursão de escola, o motorista era parente da minha avó e me levou. Meus olhos de criança enxergaram dragões com ossos de cristal, fiquei encantado e quis morar lá. Peguei aquela onda que toda criança pega, de gostar de dinossauros, e não saí mais dela. Aos 11 anos, minha mãe me pôs em um curso de desenho. Eu era ansioso, tinha traços de autismo, muita dor de cabeça e ela achou que podia me ajudar. Sem querer, me deu o poder de tirar as coisas da cabeça e pôr na realidade e no final virou minha profissão.
Você já era fixado em desenhar dinossauros?
Eu sentia que tudo o que desenhasse poderia ser meu. Para entender alguma coisa, desenhava. Descobri que não queria ser paleontólogo, queria desenhar dinossauros. Entrei na faculdade de desenho industrial no campus de Bauru da Universidade Estadual Paulista [Unesp] e fiz iniciação científica em paleoarte. Era uma área que quase não existia: havia poucos paleoartistas no Brasil e mesmo no exterior não tinha uma descrição publicada de como reconstituir dinossauros usando computação gráfica. Descrevi uma metodologia detalhada, como uma receita, que orienta o artista para que consiga reconstruções melhores. Chamamos de paleodesign a aplicação do design à paleontologia.
No que consiste esse método?
Juntei o processo de planejamento do design – um passo a passo para projetar algo com um objetivo – com os melhores suportes artísticos e as descobertas mais recentes da ciência. Basicamente era analisar o fóssil, coletar o máximo de informação possível sobre o animal. Se as partes não estivessem preservadas, eu buscava animais semelhantes para completar as lacunas e reconstruir o esqueleto. A partir disso, consigo estudar as marcas de inserção dos músculos nos ossos e, comparando com outros, construir a musculatura. Depois, com o volume definido, reconstruo a pele com base em animais atuais que são aparentados, se parecem, comem a mesma coisa ou vivem em lugares parecidos. A partir disso posso inferir padrões de camuflagem e textura. Depois construímos o ambiente, com base nas plantas que foram encontradas e no sedimento, entre outros parâmetros. Chega-se a um ponto onde é possível dizer: com os dados que temos agora, esse animal é o mais realista e fidedigno possível.
Essas reconstruções muito detalhadas podem ser feitas a partir apenas de um osso da cauda ou de um dedo, ou um dente. O quanto elas envolvem de ciência e de imaginação?
Para fotografar o passado, é necessária uma câmera feita de imaginação. O sensor dessa câmera é feito de lápis, tintas, argila ou computação gráfica, mas a lente é a ciência. Teoricamente eu poderia imaginar qualquer coloração na reconstrução de um dinossauro, porque isso não fica preservado no registro fóssil, mas existem padrões na produção de pigmentos nos animais atuais que também podem ser aplicados aos parentes extintos. Por exemplo, o único pigmento que os mamíferos produzem é a melanina. Portanto, é muito mais parcimonioso imaginar que uma preguiça-gigante tivesse pelos pretos ou brancos do que imaginá-la amarela com bolinhas rosa. Dessa forma a ciência conduz a imaginação, que preenche as lacunas.
De onde você tem o conhecimento em paleontologia?
Fiz amizade com especialistas e cursei as disciplinas relevantes: paleontologia, geologia, zoologia de vertebrados. Estudei anatomia, dissequei muitos bichos, fui até atacado por um jacaré, mas não aconteceu nada além do susto. Foi um processo maravilhoso. Li muito também.
Você trabalha com paleontólogos?
No começo, fazia por conta própria. Eu pesquisava e, às vezes, consultava paleontólogos. Mas agora trabalho para eles e geralmente fabrico a primeira visão que terão de uma espécie nova. O grupo de pesquisadores me passa todas as informações, então aprendo com o bicho que estou fazendo e todos os dias surgem descobertas que mudam tudo. Meus dinossauros sempre estarão errados, eles são a melhor representação possível com base na informação que existe naquele momento.
Você produz modelos com detalhes das escamas e a textura da pele. Como é possível?
É uma quimera pautada em ciência. Temos pele preservada de muitos tipos de dinossauro, pelos de preguiça-gigante. Existem dinossauros que parece que encontraram a medusa e ficaram petrificados, como na lenda grega: estão intactos, tridimensionais, com detalhes da pele preservados. Também conseguimos olhar os animais atuais. Há uma lógica para todas as estruturas. Por exemplo, as escamas devem ser menores nas articulações, onde a pele se movimenta mais. Onde é preciso proteção, elas são maiores. Assim, posso escolher tamanho, disposição e formato.
Você tem oportunidade de ir a campo para ver os achados?
Aqui em Uberaba eles são encontrados no meio da cidade. Durante a construção de um condomínio, encontraram dois dinossauros de 15 metros a 2 minutos a pé da praça central. Me chamaram, fui correndo e vi o campo cheio de bichos. Pude filmar, ver de perto a extração e desenhar. Em outro ponto central da cidade foi encontrado um fóssil próximo à calçada, pude acompanhar a escavação e projetar uma praça no local.
Você participa da construção de uma praça dos dinossauros em Uberaba, não é?
Já terminamos, a praça é o geossítio Santa Rita. Já instalamos a reconstituição de dois filhotes e um esqueleto. Na praça ao lado tem mais um dinossauro, e há um mês terminei um com 6 metros de comprimento que está temporariamente em uma exposição em um shopping da cidade. Depois irá para outra praça. São quatro geossítios já finalizados, mas muitos outros aguardam revitalização.
Como surgiu essa oportunidade?
Sonho com isso desde criança. O geólogo Luiz Carlos Borges Ribeiro, que foi diretor do Museu dos Dinossauros de Uberaba por mais de 20 anos e hoje está à frente da geologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, há cerca de seis anos percebeu que Uberaba tinha potencial para se tornar um geoparque e fez a tese de doutorado sobre isso. No mesmo momento, um professor de outro instituto notou uma rocha estranha em um barranco no centro da cidade, achou que parecia um fóssil: era uma forma ovalada com cerca de 15 centímetros. Luiz confirmou que era um fóssil e pediu que eu fizesse o design de uma praça naquele lugar. No ano passado conseguimos a verba para construir. Ao escavar, descobrimos que era um úmero – o osso do braço – de um desses dinossauros grandes e pescoçudos. Ele estava morto ali havia 80 milhões de anos. Era um lugar com mato e árvores, agora virou uma praça.
A ideia é ter referência a isso em vários pontos da cidade, para atrair turismo paleontológico?
Exatamente, por isso um geoparque. É possível ter um valor geológico didático, educacional e de entretenimento muito grande. As pessoas também visitam Uberaba por causa da religião, porque aqui viveu o [médium espírita] Chico Xavier e temos muitas igrejas históricas. Temos produção de grãos, as vacas mais caras do mundo, do grupo do zebu – a maior exposição de gado zebu é aqui. É um polo econômico por causa da agropecuária, religião e paleontologia.
O que envolve criar esse geoparque?
É um macroprojeto de gestão territorial. Envolverá a região inteira, com vários sítios como pontos de visitação. Temos 4 pontos, em breve teremos 16. Mas é preciso fazer uma solicitação à Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura], e ainda temos bastante trabalho antes de chegar a esse ponto.
Ao fazer livros, vídeos e outros materiais, para adultos e crianças, você chama a atenção para a área. Isso ajuda a impulsionar mais descobertas?
Ajuda, é um ciclo. Estimulamos mais crianças a se tornarem pesquisadoras, pode gerar mais verba para pesquisa e serão necessários mais paleoartistas. Quando comecei, todos os paleontólogos tinham um desenho de dinossauro vivo nos slides de suas aulas, mas ninguém queria pagar por isso. Eles nem lembravam que entraram na paleontologia porque viram paleoarte em um livro, um filme ou um museu. Agora eles já sabem que é importante. Se querem a capa de uma revista como a Nature, por exemplo, têm mais chance de concorrer usando paleoarte para ilustrar o estudo. Se algumas das crianças para quem dei aulas virarem paleortistas, será muito bom.
* Este artigo foi republicado do site Revista Pesquisa Fapesp sob uma licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o artigo original aqui.