15/07/2025 - 11:17
O que era para ser uma votação rotineira no Parlamento virou cabo de guerra ideológico, com bloqueio de conservadores a candidata dos social-democratas. Episódio azedou o clima na coalizão de governo.O Bundestag, câmara baixa do Parlamento alemão, deixou de cumprir uma de suas mais importantes funções constitucionais na sexta-feira passada (11/07), quando a eleição de três novos juízes para o Tribunal Constitucional Federal, a corte constitucional da Alemanha, teve de ser adiada na última hora.
Isso porque ficou claro que ao menos uma candidata, a jurista Frauke Brosius-Gersdorf, poderia não obter a maioria necessária de dois terços dos votos dos deputados.
Na Alemanha, a metade dos 16 juízes da corte constitucional é eleita pelo Bundestag; a outra metade é eleita pela câmara legislativa onde estão representados os estados, o Bundesrat. O preenchimento das três atuais vagas cabe ao Bundestag.
Numa primeira etapa, a comissão parlamentar de eleição de juízes analisa os nomes que foram sugeridos pelos partidos políticos. Na atual eleição, dois foram propostos pelo Partido Social Democrata (SPD), e um pela bancada conjunta de União Democrata Cristã (CDU) e União Social Cristã (CSU).
A sugestão de nomes pelos partidos é uma prática consolidada que visa garantir a maioria de dois terços. Tradicionalmente, essa maioria é garantida concedendo a todos os partidos necessários para alcançá-la o direito de propor candidatos com base em suas representações no Bundestag e Bundesrat. A fórmula usada desde 2018 é 3-3-1-1. Isso significa que a CDU/CSU e o SPD podem indicar três juízes constitucionais cada, enquanto o Partido Verde e o Partido Liberal Democrático (FDP) podem indicar um cada. A Esquerda e a Alternativa para a Alemanha (AfD) permanecem de fora desse acordo.
Seja qual for o arranjo entre os partidos, a maioria de dois terços, tanto na comissão como no plenário, deve sempre ser alcançada. Após a mais recente eleição, os partidos da atual coalizão de governo, a CDU/CSU e o SPD, não têm maioria de dois terços no Bundestag. Assim, eles dependem dos votos da oposição.
Isso não deveria ser um problema, pois tanto o Partido Verde como A Esquerda já haviam sinalizado que iriam votar em Brosius-Gersdorf, uma das indicadas pelo SPD. Porém, ficou claro que alguns parlamentares da CDU não iriam, principalmente por causa de posições da jurista que eles consideravam liberais demais em relação ao aborto.
Restava a AfD, um partido com o qual os demais excluem qualquer cooperação e que, neste caso específico, já havia deixado clara sua veemente oposição ao nome de Brosius-Gersdorf – o que não surpreende, pois a jurista já se manifestou a favor da proibição da AfD se as exigências legais forem cumpridas.
Acusação de plágio pela CDU
As acusações contra Brosius-Gersdorf começaram a circular primeiro em sites e blogs de nicho da ultradireita, segundo uma análise do think tank Polisphere, sendo depois reproduzidas pela imprensa tradicional.
Na sexta-feira, poucas horas antes da votação, a CDU exigiu que o SPD retirasse o nome de Brosius-Gersdorf, alegando que ela teria plagiado trechos de sua tese de doutorado em 1997, citando declarações do “caçador de plágios” alemão Stefan Weber. Nesse meio tempo o próprio Weber declarou na rede social X que a interpretação feita pela CDU/CSU de suas acusações é falsa, pois a tese de Brosius-Gersdorf é anterior a um artigo do marido dela com o qual há semelhanças, publicado em 2000.
Com a exigência da CDU ao SPD, a sessão do Bundestag foi interrompida e, após uma reunião de crise, o Parlamento decidiu adiar as votações dos nomes dos novos juízes da corte constitucional.
A AfD, prevendo que o nome seria rejeitado, votou contra o adiamento e defendeu que a votação ocorresse como planejado. “Esta juíza é inaceitável, e a indicação prejudicou gravemente a reputação do Tribunal Constitucional”, declarou o secretário-executivo da bancada, Bernd Baumann.
Durante o debate, o parlamentar Gottfried Curio, da AfD, chamou Brosius-Gersdorf de “extremista de esquerda” – o que lhe rendeu uma reprimenda da presidência parlamentar.
A líder da bancada d’A Esquerda, Heidi Reichinnek, culpou a CDU pelo impasse. “Vocês estão fazendo jogos de poder político partidário e, mais uma vez, gerando absoluto caos.” A colíder da bancada do Partido Verde Britta Hasselmann externou opinião semelhante: “Hoje é um dia ruim para o Parlamento, para a democracia e para o Tribunal Constitucional Federal”.
Sem data para a votação
Normalmente a eleição de um juiz para o Tribunal Constitucional é uma decisão rotineira feita por meio de uma eleição secreta. Os parlamentares entram nas cabines de votação um a um e depositam seus votos nas urnas. Enquanto isso, o próximo debate parlamentar começa. O resultado da votação é anunciado durante a discussão dos demais itens da pauta, que são brevemente interrompidos para esse fim.
A atual votação ameça virar a primeira crise do governo do chanceler federal Friedrich Merz, que se elegeu criticando as constantes brigas internas da coalizão anterior, do ex-chanceler Olaf Scholz, e prometendo estabilidade.
O secretário-executivo da bancada do SPD, Dirk Wiese, falou em “caça às bruxas” contra uma “jurista altamente respeitada”. Dirigindo-se à CDU/CSU, Wiese disse que o SPD acatou decisões difíceis da coalizão nas últimas semanas e que agora espera o mesmo dos conservadores.
Críticas vieram também do presidente estadual do SPD na Turíngia, Georg Maier. “É alarmante que nem mesmo o chanceler federal tenha conseguido mobilizar a CDU/CSU”, disse ele ao jornal Handelsblatt. “Como ele pode liderar o país em tempos difíceis se seus próprios comandados se recusam a segui-lo mesmo em decisões comparativamente insignificantes?”
O vice-chanceler Lars Klingbeil, do SPD, aparentemente compartilha desse temor. “Se há votações controversas aqui, deve haver liderança e responsabilidade também, e isso deve ser demonstrado”, exigiu ele no Bundestag, sem se referir diretamente à CDU/CSU.
A oposição fala em crise no governo. “O adiamento da eleição para o Tribunal Constitucional Federal mergulhou a coalizão numa grave crise”, declararam as duas líderes da bancada do Partido Verde, Britta Hasselmann e Katharina Dröge.
Ainda não está claro quando a votação para preencher as três vagas no Tribunal Constitucional ocorrerá. O recesso parlamentar de verão começou esta semana e dura até setembro. No entanto, o Partido Verde defende que haja uma sessão extraordinária na próxima semana, argumentando que se trata de uma questão de respeito para com os candidatos e o Tribunal Constitucional Federal. “Não podemos aceitar um impasse durante todo o verão, em que o país esteja incerto sobre se ainda temos um governo estável.”
Jurista reage a acusações: “Difamatório e irrealista”
Nesta terça-feira, Brosius-Gersdorf se manifestou publicamente pela primeira vez sobre o caso. Em carta divulgada pela imprensa, ela afirmou que a imagem dela apresentada em alguns meios de comunicação é “imprecisa e incompleta, pouco objetiva e pouco transparente”. Como exemplo ela citou a alegação, que chamou de difamatória, de que ela defende a legalização e a descriminalização do aborto até o nascimento. Brosius-Gersdorf também rejeitou o rótulo de “radical de esquerda” como “difamatório e irrealista”. “Se categorizarmos politicamente minhas posições acadêmicas em toda a sua amplitude, emerge uma imagem do centro democrático.”
Em carta aberta, mais de 300 juristas criticaram o tratamento dispensado pelo Parlamento a Brosius-Gersdorf, afirmando que ele está prejudicando as instituições envolvidas e a ordem democrática. Eles descreveram as acusações de plágio como “marcadamente inverossímeis” e um “ataque à reputação da ciência”, e acusaram os parlamentares de “falta de compostura política”. Entre os signatários estão ex-juízes do Tribunal Constitucional, como Susanne Baer e Andreas L. Paulus.