01/06/2016 - 19:15
Quando o ensino religioso se tornou lei no Brasil, em 1989, o historiador, antropólogo, filósofo e professor Leandro Karnal logo se mobilizou para evitar que a aula se tornasse espaço de pregação de doutrinas. Produziu, com a colega Elaine Moura, uma série de livros didáticos com reflexões sobre história da religião, antropologia religiosa e tolerância ativa. Embora não seja novo, este último conceito propõe que não basta tolerar a existência de outros com opiniões diferentes; é preciso achar fundamental que haja diversidade de credos, culturas e etnias para a riqueza do mundo. Nesta entrevista, Karnal estende o debate para o fundamentalismo, a internet e a escuta.
PLANETA – Diante dos extremismos político, religioso e a intolerância aos estrangeiros, dentro e fora do país, é possível pensar a tolerância ativa como uma solução?
KARNAL – A tolerância ativa é uma utopia, e a utopia serve para reformar a prática atual. A utopia tem a função de estabelecer um padrão para a mudança. A intolerância é um crime que deve ser combatido, e a tolerância passiva é a postura dominante hoje. Nesse contexto, a tolerância ativa é a meta. Eu sou A, ele é B, e o mundo é melhor por causa disso. “A uniformidade é a morte”, como diz Octavio Paz – e Paz era considerado conservador. Diversidade é vida. Mas a palavra tolerância, em si, tem uma raiz terrível. Tolerância vem do latim e significa “sofrer resignado”. Não é uma boa palavra. “Tolerante” é alguém que baixa a cabeça. A tolerância ativa dá um sentido de que, exatamente porque domino a minha cabeça, posso baixá-la, ou pelo menos não deixá-la se abater.
PLANETA – Teria outra palavra melhor?
KARNAL – Você não deve se ater à etimologia, porque vai rejeitar as palavras. O que é um fulano entusiasmado? En + theos, “em Deus”. O que é alguém fanático? É alguém que está dentro do templo. O que é alguém profano? Aquele que está na frente do templo. Ou seja, as palavras não podem ser consideradas em si, mas, nesse caso, ela mostra uma admiração indireta que temos pela força da intolerância. Pagamos para ver alguém batendo em alguém sem motivo – o que é uma patologia curiosa. E quem bate mais é o macho alfa, não é o tolerante. A tolerância é vista como feminina, fraca. Tolera quem não tem condições de mudar. Quem tem condições muda. Então, um dos motivos para a intolerância que está na moda é que hoje ela é sinal de força e de ação. E todos os manuais de autoajuda indicam que você deve ser afirmativo, colocar sua opinião, olhar no rosto. Porque é sinal de decisão, de clareza, de caráter, e assim por diante.
PLANETA – Parece que as pessoas não conseguem mais conversar e expor cada um o seu lado. Ou isso é uma impressão?
KARNAL – Não, não estão conseguindo mesmo. Não é fácil ouvir as pessoas. Não é fácil contrapor-se às ideias. O mais fácil é atacar e diminuir – especialmente nos campos dolorosos, como a política. A sociedade hoje não tolera a divergência, não escuta o outro, e isso é um comportamento autista. Falei isso em uma palestra. Aí, levantou a mãe de um autista, começou a chorar e disse que não posso usar essa palavra. Respondi a ela em latim: “Quod erat demonstrandum” (“Como queria demonstrar”). Eis o autista contemporâneo! Ela não ouviu e só pegou aquilo que a toca. Aí, em outra ocasião substituí “autista” por “esquizofrênico” e a Sociedade Brasileira de Psicanálise me escreveu dizendo que não posso usar o termo dessa forma. Agora eu pergunto: a gente pode usar alguma palavra no mundo?
PLANETA – Por que as posições se mostram mais polarizadas atualmente?
KARNAL – Uma professora de gênero na Unicamp dava uma palestra e um aluno da sala perguntou quantos gêneros sexuais havia no planeta Terra. Ela parou, pensou e respondeu: “Provavelmente, 7 bilhões”. Mas a grande questão é que tanto o pensamento conservador como parte da esquerda querem produzir uniformização. Porque a uniformização tranquiliza o pensamento. Quando você divide o mundo de maneira maniqueísta, entre petralhas e coxinhas, estabelece uma tranquilidade de pensamento. Porque não é mais necessário passar pelo debate – você tem apenas dois polos, o preto e branco.
PLANETA – É mais fácil, não tem de pensar…
KARNAL – A liberdade à qual estamos condenados é incômoda. Ela causa a má-fé, quer dizer, vou atribuir a decisão a terceiros. Não é fácil viver na incerteza, em liberdade. É por isso que hoje cresce tanto a sedução do fundamentalismo. Em um mundo em que tudo é mais ou menos líquido, como diz (o sociólogo polonês) Zygmunt Bauman, o fundamentalista só transmite certezas. Isso é muito sedutor.
PLANETA – Mas essa tendência não existia antes?
KARNAL – As pessoas não tinham acesso à informação. Imagine o que eram as bibliotecas medievais, comparativamente, com a facilidade de acesso da internet. Essas confusões são contemporâneas. E são positivas, porque o saber era muito concentrado, pouco democrático, muito desequilibrado há algum tempo. Derrubamos o discurso da autoridade e instituímos a terra da liberdade total, em que tudo é uma questão de opinião. Isso é mais forte nas ciências humanas do que nas exatas. Então, como ser tolerante com o outro, se a verdade é opinativa? Todo mundo pode fazer do que jeito que quiser. Toda escolha é validada pelo sujeito, e não mais pela sociedade. Há 300 anos, ninguém escolhia sua profissão, nem com quem ia casar. Hoje podemos escolher. E, curiosamente, não nos tornamos mais felizes – nos tornamos mais livres para escolher a infelicidade.