01/12/2007 - 0:00
Somos todos humanos, eu, você, os outros. Somos todos Homo sapiens. No entanto, somos diversos, você, eu e todos os outros, pois temos nossas culturas, religiões e histórias pessoais diferentes, o corpo, a cor da pele, a língua, o modo de entender a vida… Não há dois humanos exatamente iguais. E jamais houve. Você já pensou nisso?
A diversidade é uma de nossas maiores riquezas. Foi ela que possibilitou à espécie experimentar-se de infinitas formas pela longa e difícil jornada da evolução. A diversidade biológico-cultural, ao contrário das teorias que defendem pureza racial e coisas do tipo, é que pode nos oferecer mais e melhores possibilidades de aperfeiçoamento. Se obedecêssemos todos, automaticamente, a um só modo de ser e compreender a vida, nossos horizontes evolutivos seriam bem mais limitados.
E na área da sexualidade? Sexualmente também somos diversos. Pode soar exagerado, mas pense bem: é impossível haver dois seres humanos exatamente com a mesma sexualidade, a mesmíssima forma de viver as relações pessoais e o desejo sexual. Existem humanos homens e humanos mulheres – mas quando o assunto é sexualidade, as possibilidades que se formam a partir daí são tantas que não daria para catalogar com exatidão todas as variantes da sexualidade humana.
A maioria das sociedades atuais, porém, rejeita a natureza diversa da sexualidade de nossa espécie. Aliás, elas não só rejeitam como estabelecem um padrão de normalidade e punem quem não obedece a ele. Foi assim, tentando padronizar artificialmente o que por natureza é amplo e diverso, que essas sociedades construíram uma triste história de intolerância, preconceito e violência, não apenas contra quem não se enquadra no padrão, mas contra a própria espécie humana.
A DISCRIMINAÇÃO e a violência contra pessoas por causa de sua orientação sexual as levam, freqüentemente, a uma vida semiclandestina, regida pelo medo constante de ser descobertas e incompreendidas. Para não serem discriminadas, essas pessoas caem em outro tipo de sofrimento, tão ou mais cruel: a dor de não poder ser o que se é. O que é pior: sofrer abertamente a discriminação ou viver uma vida de mentira?
Talvez você, leitor, seja uma pessoa perfeitamente encaixada no modelo padrão de sexualidade que nossa sociedade estabeleceu, o modelo heterossexual cem por cento. Se é o seu caso, você não sofre discriminação por sua sexualidade, está livre para ser e expressar o que é. Que bom! Mas se você está fora do padrão, sabe muito bem qual o preço que tem de pagar para ser o que é. De qualquer modo, em ambos os casos, encaixando-se ou não em padrões, você tem a sua própria sexualidade, e ela, em sua natureza mais profunda, é só sua, é única, e ninguém mais tem uma igual, pois ninguém mais tem as mesmas preferências, no mesmo grau, do mesmo jeito. Por que então discriminar, se todos nós, por trás dos nossos crachás sociais, temos nossas íntimas particularidades em relação aos padrões sexuais estabelecidos?
A sociedade discrimina o diferente porque é assim que ela busca manter o controle sobre seus indivíduos. Talvez seja um forma de estratégia natural de organização e sobrevivência dos corpos sociais, sim, pois é mais fácil controlar o que se comporta igual. Mas o custo disso é a anulação do próprio indivíduo, que é estimulado desde o início a seguir os mesmos passos de todos, como numa manada.
FELIZMENTE, PORÉM, trazemos em nós, cada um de nós, o impulso potencial para a auto-realização, ou seja, para ser quem verdadeiramente somos em nossa essência, em nossa natureza mais legítima, em vez de obedecer cegamente aos padrões impostos, que nos querem indiferenciados. Os que seguem o impulso da auto-realização acabam se diferenciando do resto da manada e, de fato, pagam caro por construir seu próprio caminho – mas são justamente essas pessoas que transformam a sociedade, apresentando- lhe os novos valores.
Atualmente, a humanidade vive a intensificação desse processo de transformação do comportamento coletivo em vários aspectos, como nos movimentos feministas e na luta anti-racismo. No campo da sexualidade também não seria diferente: hoje as sociedades se vêem na obrigação de discutir o tal modelo de padronização da sexualidade, mesmo sendo um tema incômodo, pois é cada vez mais difícil e inviável esconder o fato de que somos, sempre fomos, sexualmente diversos.
Quando me convidaram para participar, como jornalista, da edição inicial do For Rainbow, o festival de cinema da diversidade sexual, que aconteceu em Fortaleza em julho de 2007, tive dúvidas se a produção do evento conseguiria, de fato, tirar a idéia do papel e realizá-la. O Ceará é um Estado que, além de muito pobre, tem reconhecida tradição machista, e onde, segundo dados recentes, a homofobia entre escolares adolescentes é uma das maiores do Brasil. Mas o evento aconteceu, sem contestações, com apoio da mídia. E voltei de lá esperançoso, não somente pelo festival, mas também pelo ótimo exemplo que a capital cearense está dando ao País com a implementação de políticas públicas de garantia ao livre exercício da sexualidade e de combate ao preconceito. Fica cada vez mais claro que o direito à própria sexualidade é uma conquista da democracia e que políticos e governantes serão cada vez mais cobrados em relação a isso.
O For Rainbow de Fortaleza não está só. Vários outros eventos são criados a cada dia no mundo como forma de expressão da sexualidade humana diversa. As passeatas do orgulho gay, de início tímidas, vão deixando de ser eventos representativos de uma minoria sexual para se tornar grandes festas de todos, nas quais se celebram a alegria e a liberdade de poder ser o que se é e de viver em harmonia com o diferente. Como a grande mídia já não pode mais fingir que tais coisas não existem, o mundo fica cada vez mais ciente do que sempre foi óbvio – e, assim, a natureza diversa de nossa sexualidade deixa de ser um tabu e passa a ser algo natural, para nós e, principalmente, para as novas gerações.
Leia a reportagem completa sobre a imagem acima.
A psicologia do inconsciente nos ensina que ninguém vive plenamente sua própria vida enquanto não reconhece o que na verdade é. Mas ela também nos diz que esse reconhecer-se sempre traz alguma crise. São verdades psicológicas que muitos já entendem, mas o que muitos ainda não percebem é que elas valem tanto para o indivíduo como para a espécie como um todo. Neste momento histórico, a humanidade se debate justamente nas crises que vêm desse necessário processo de auto-aceitação. Com a aproximação das culturas e a facilidade da comunicação e dos transportes, a espécie passou a se conhecer num nível jamais experimentado – e é normal que isso cause medo e insegurança. E conflitos também, pois se somos educados entendendo que nossa cultura é a melhor, provavelmente o contato inicial com outra cultura não será muito amistoso. A aproximação do diferente às vezes assusta, mas só assim podemos perceber que o que antes julgávamos feio, errado e perigoso é apenas diferente.
Atualmente, todas as pessoas estão sendo levadas a reconhecer que sua cultura não é a melhor, que sua religião é apenas uma entre tantas e seus valores, antes absolutos, tornam-se relativos diante de outros valores. A atual crise, portanto, era mesmo inevitável. E é uma crise de percepção: estamos nos percebendo de modo diferente ao que sempre fizemos. Mas há uma boa notícia, e ela também vem da psicologia: num segundo momento, o conflito dá lugar à assimilação do novo, pois o indivíduo aceita o que descobriu sobre si mesmo como parte legítima de sua personalidade e a integra à sua auto-identidade. Que bela ironia… A crise de autopercepção que tanto dói nos leva, no final, anos tornarmos mais equilibrados, coesos e inteiros.
Agora, a luta pela legitimação da diversidade sexual como característica humana não é mais apenas uma luta de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transgêneros. Esse reconhecimento do que sempre fomos é um desafio de todos. De todos, sim, pois até mesmo os que defendem os tais padrões sexuais e negam a diversidade também pagam seu preço, já que têm cada vez mais de conviver com o diferente que tanto lhes incomoda.
É, não está sendo fácil para nenhum dos lados. Mas já passamos pela fase mais difícil. A humanidade, a cada dia, está mais transparente e verdadeira para com ela própria. E isso é uma ótima notícia.