27/10/2025 - 14:40
Campanhas para reerguer o país já teriam arrecadado mais de R$ 2,7 bilhões. Mas críticos querem saber como elas são geridas, de onde vem o dinheiro e como ele será investido.Diante do desafio de se reerguer após mais de uma década de guerra civil, várias cidades e distritos da Síria vêm arrecadando montantes exorbitantes por meio de campanhas de financiamento coletivo. Para alegria de uma parte da população síria — e ceticismo de outra —, o valor alegadamente levantado desde agosto beira os 500 milhões de dólares (R$ 2,7 bilhões), de acordo com estimativas de reportagens da imprensa local consultadas pela DW.
Os montantes totais arrecadados em cada área são divulgados na mídia, mas difíceis de verificar de forma independente devido às diferentes formas que as doações parecem estar assumindo. Faltam transparência sobre a origem das supostas contribuições voluntárias, bem como clareza sobre quais poderão ser seus efeitos sobre a reconstrução do país.
A região de Idlib, no norte da Síria, por exemplo, arrecadou cerca de 208 milhões de dólares (R$ 1,2 bilhão) em aproximadamente 24 horas. A título de comparação, a ex-vice-presidente dos Estados Unidos Kamala Harris se viu diante de um feito notório ao levantar menos de um quarto disso para sua campanha à chefia da Casa Branca no mesmo intervalo em 2024: 47 milhões de dólares (R$ 252 milhões).
“Restaurar a vida”
As campanhas foram recebidas com comemoração, orgulho e muito alarde da mídia. Para muitas pessoas, é um momento de satisfação, já que o país luta para se reconstruir. Os sírios assistiram à queda do ditador Bashar al-Assad no ano passado, seguida pela formação de um novo governo.
“Essas campanhas foram lançadas com base no princípio de solidariedade e cooperação entre os sírios”, explicou Fadel al-Akl, membro do comitê organizador da campanha de arrecadação de fundos de Idlib. “Não há infraestrutura, escolas, instalações médicas, nem mesmo estações de bombeamento de água. Portanto, a primeira etapa é restaurar a vida nessas aldeias e cidades destruídas.”
Poucas iniciativas divulgam na internet a identidade dos doadores. Na região de Idlib, uma lista declarada por um grupo de voluntários indica que pessoas de diferentes classes sociais participaram da campanha. Doações variando entre 4 dólares (R$ 21) e 5 mil dólares (R$ 27 mil) somaram 350 mil dólares (R$ 1,9 milhão).
“Como cidadão, eu queria contribuir com esta campanha para todos os meus irmãos e irmãs sírios após anos de guerra”, explicou Mustafa al-Farra, empresário sírio de Maarat al-Numan, no sul de Idlib, ao justificar sua doação de 250 mil dólares (R$ 1,3 milhão). “Que a Síria retorne à sua antiga glória — e ainda melhor — após a reconstrução.”
O maior doador da campanha de Idlib foi Ghassan Aboud, bilionário sírio radicado nos Emirados Árabes Unidos, anteriormente considerado um inimigo do regime de Assad. Ele doou 55 milhões de dólares (R$ 296 milhões).
Laços políticos
Mas nem todos demonstram entusiasmo. À medida que as campanhas chegam à ordem dos milhões de dólares, observadores se tornam cada vez mais céticos.
Haid Haid, pesquisador sírio do think tank britânico Chatham House, apontou que a rica família Hamsho, conhecida por manter laços comerciais com o ditador sírio deposto, doou vários milhões para duas campanhas. “O alvoroço [sobre estas doações] reacendeu o debate sobre o tratamento opaco do governo de transição aos camaradas da era Assad”, escreveu na revista Al Majalla, com sede no Reino Unido.
Uma das campanhas pedia fundos para a região sul de Sweida, onde prevalecem relações tensas entre membros da minoria drusa e forças pró-governo. Há também relatos de violência, execuções extrajudiciais e sequestros.
A campanha não foi bem recebida por muitos moradores da região, disse à DW Salman al-Shawfi, um agricultor de Sweida. “Eles realizaram a campanha em um local destinado ao luto, soltaram fogos de artifício e coletaram doações para restaurar aldeias cujos habitantes foram deslocados. Vários deles foram mortos”, reclamou. “Esta campanha é vazia de substância.”
Projetos, e não doações
Os críticos das campanhas também sugerem que algumas das doações maiores para as campanhas de financiamento coletivo — especialmente aquelas milionárias, que abruptamente multiplicam os montantes arrecadados — são, na verdade, projetos já planejados e orçados.
As chamadas “doações” de vários ministérios do governo seriam apenas o orçamento anual para a cidade ou distrito, alegam estes críticos. “Não se trata de novos fundos, mas apenas de uma tentativa de melhorar a imagem do novo governo”, reclamou um internauta nas redes sociais.
Por exemplo, a mídia local reportou que, entre os maiores doadores em Idlib, estavam o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), ligado à Organização das Nações Unidas (ONU), que aparentemente doou 14 milhões de dólares (R$ 75 milhões), e a Sociedade Médica Sírio-Americana (SAMS), que doou 11 milhões de dólares (R$ 59 milhões).
Abdulfatah Elshaar, presidente do conselho da SAMS, esclareceu que o valor não se refere a uma doação em dinheiro. Mas, sim, a recursos disponibilizados para vários projetos diferentes, incluindo um hospital especializado e um centro de oncologia nos quais a SAMS está trabalhando na Síria.
Um porta-voz do Pnud deu uma explicação semelhante. “O montante mencionado refere-se aos fundos que o Pnud alocou para novos projetos de desenvolvimento e recuperação em Idlib, como parte do nosso esforço mais amplo em todo o país”, disse à DW. A agência da ONU anunciou os projetos em Idlib ao mesmo tempo que foi lançada a campanha de financiamento coletivo, assim como fez a SAMS.
O Pnud apoia amplamente as campanhas, acrescentou o porta-voz. Iniciativas como essas “são passos significativos para apoiar os sírios e restaurar uma sensação de normalidade em todo o país”, disse ele.
Como o dinheiro será gasto?
Permanecem ainda perguntas sobre como o dinheiro arrecadado será investido na reconstrução da Síria. Ao veículo de imprensa sírio Enab Baladi, organizadores das campanhas prometeram publicar listas com os nomes dos doadores e o destino dos fundos doados por cada um.
Em Idlib, Fadel al-Akl disse à DW que cerca de um quinto do dinheiro vinha sendo transferido em espécie. Outros 40% vieram na forma de projetos pré-planejados, e o restante estava chegando por meio de transferências bancárias.
“Algumas pessoas não têm dinheiro em mãos e estão tentando converter ativos em dinheiro”, explicou ele. “Agradecemos isso e acreditamos de boa-fé que elas pagarão o que prometeram publicamente.”
Independentemente de quanto dinheiro seja arrecadado, ou quais somas façam parte de projetos ou orçamentos pré-planejados, uma coisa é certa: o financiamento coletivo não cobrirá toda a reconstrução da Síria. Em um relatório publicado neste mês, o Banco Mundial estimou os custos em 216 bilhões de dólares (R$ 1,2 trilhão).
