16/01/2023 - 13:05
Na primeira metade da década de 1990, a historiadora Silvia Hunold Lara estudava a legislação sobre a escravidão quando foi convidada a escrever um artigo para o livro Liberdade por um fio – A história dos quilombos no Brasil (Companhia das Letras, 1996), organizado pelos também historiadores Flávio Gomes e João José Reis. Para elaborar o texto, Lara foi pesquisar na biblioteca da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde lecionava, e deparou-se com uma cópia do original de um livro até hoje inédito. Trata-se de Os primeiros quilombos (Subsídios para a sua história), organizado pelo pesquisador português Ernesto Ennes (1881-1957) com 94 documentos sobre Palmares, refúgio de escravizados entre os séculos 17 e 18 na capitania de Pernambuco. Como na época estava envolvida em outros projetos, Lara só conseguiu retomar a análise dos documentos em 2005, quando decidiu transformar Palmares em tema de sua tese de titularidade, defendida quatro anos mais tarde no Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.
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Desde então Lara vem pesquisando aquele que considera ser o mais importante movimento de resistência à escravidão da história do Brasil. “Além de longevo e extenso em termos geográficos, Palmares impactou a forma como a Colônia lidava com os escravizados”, diz a estudiosa, hoje professora aposentada. A síntese de todos esses anos de pesquisa está expressa no livro Palmares & Cucaú: O aprendizado da dominação (Edusp, 2021), lançado com apoio da Fapesp e vencedor da categoria ensaio social do Prêmio Literário Biblioteca Nacional, concedido em outubro de 2022. A obra trata de um episódio pouco conhecido na história de Palmares: o acordo de paz de 1678, negociado após a destruição dos principais mocambos de Palmares, como Macaco e Subupira, pelas forças coloniais. “A primeira vez que a palavra ‘quilombo’ apareceu na documentação referindo-se aos Palmares foi em uma certidão de 1680. Ela se tornou frequente para designar os assentamentos de fugitivos no Brasil a partir da segunda década do século 18”, diz a historiadora.
Acordo de curta duração
Segundo a pesquisadora, o acordo de paz exigiu, dos amocambados, obediência ao governo colonial e determinou que Gana Zumba, então principal líder palmarista, entregasse os cativos não nascidos nos mocambos aos senhores de escravizados de Pernambuco e capitanias anexas. “Por outro lado, o governo de Pernambuco concedeu aos palmaristas terras para se estabelecerem em uma aldeia na região de Cucaú, reconheceu que seus moradores teriam liberdade para plantar e auferir os mesmos lucros que os demais vassalos de Portugal e concedeu alforria aos nascidos em Palmares”, relata a pesquisadora.
O trato não durou muito tempo: em menos de dois anos Gana Zumba foi assassinado e Cucaú, destruída por tropas coloniais. “Quem havia sido libertado foi novamente escravizado, o que criou um problema legal para a Coroa portuguesa e gerou muitos debates entre Pernambuco e Lisboa, até que um alvará régio emitido em 1682 reconheceu o acordo de 1678 e mandou investigar o caso”, aponta Lara. Entretanto, nem todos palmaristas haviam seguido para Cucaú em 1678. Os dissidentes, liderados por Zumbi, refugiaram-se na Serra da Barriga.
Na segunda metade da década de 1680, o local tornou-se um núcleo armado dos Palmares até ser destruído em 1694. Um ano depois, Zumbi foi assassinado por uma tropa comandada por André Furtado de Mendonça. “Mas os Palmares se reergueram muitas vezes: o mocambo do Mouza, o mais tardio, só foi extinto em 1714.”
Vasta documentação
Em Palmares & Cucaú, o acordo de paz e seus desdobramentos são analisados a partir de vasta documentação, que inclui fontes reunidas por Ernesto Ennes em sua obra inédita, Os primeiros quilombos (Subsídios para a sua história). A “narrativa histórica de Palmares, apesar de muito frequentada, esteve até hoje assentada em um conjunto relativamente restrito de fontes. Com certeza muitos historiadores estiveram nos arquivos, mas a esmagadora maioria concentrou suas análises em alguns textos fundamentais, transcritos e publicados ao longo dos séculos 19 e 20”, escreve Lara no livro. “Há ainda muitos documentos a serem pesquisados”, completa a historiadora em entrevista a Pesquisa Fapesp.
Segundo Lara, as fontes que utilizou revelam vários nomes de personagens em torno de Palmares, inclusive o que ela considera mais importante, dos moradores dos mocambos. “É fundamental trazer essas pessoas para o centro da história de Palmares”, defende. No momento, a especialista prepara um artigo a respeito das grafias de nomes de integrantes de Palmares em parceria com o filólogo Phablo Roberto Marchis Fachin, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo (USP). A dupla organizou o livro Guerra contra Palmares: O manuscrito de 1678, lançado em 2021, pela Chão Editora (ver Pesquisa Fapesp nº 320). Na obra, os pesquisadores transcrevem as duas versões originais do texto escrito no século 17 que ficou conhecido como Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco, cuja autoria atribuem ao padre Antônio da Silva (?-1697). Uma delas, perdida desde meados do século 19, foi encontrada pela pesquisadora em 2009 no Arquivo da Torre do Tombo, em Portugal. O texto exalta, sobretudo, a atuação do então governador da capitania de Pernambuco dom Pedro de Almeida (1630-1679) e a vitória obtida contra os Palmares em ataques liderados pelo soldado Manuel Lopes (?-?), em 1675, e pelo sertanista Fernão Carrilho (c.1640-1703), em 1677.
Erros perpetuados
No livro, os organizadores compararam as duas versões originais com a transcrição do documento, publicada em 1859 na Revista IHGB, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que desde então tem sido a principal fonte de pesquisa sobre Palmares, segundo Lara. “Nessa publicação do século 19 há várias substituições de palavras e expressões, bem como modificações na pontuação, na ordem dos parágrafos e, em especial, nos nomes dos mocambos e das lideranças dos Palmares”, comenta Fachin.
“O copista do século 19 não deve ter entendido o traçado das letras do século 17. Além disso, é provável que ignorasse que os nomes eram de centro-africanos. Como o documento da Revista IHGB foi muito usado por pesquisadores, isso acabou perpetuando erros”, prossegue o filólogo. De acordo com os pesquisadores, em vez de “Ganga Zumba”, por exemplo, o correto seria “Gana Zumba”. “Cerca de 80% dos escravizados trazidos para a Bahia e Pernambuco naquele momento eram oriundos do interior da região de Luanda, na África, e falavam quimbundo. ‘Ganga’ nesse idioma significa ‘sacerdote’, enquanto ‘gana’ corresponde a ‘senhor’”, explica Lara. Outro exemplo é a liderança conhecida na historiografia como Acotirene (?-?), apontada como mãe de Gana Zumba, quando o mais correto seria Aca Inene.
Repositório digital
Todo o material levantado nos últimos 17 anos está disponível no banco de dados Documenta Palmares. No repositório criado pela estudiosa estão cerca de 4.400 cópias de documentos sobretudo dos séculos 17 a 19, cujos originais foram localizados em arquivos e bibliotecas de países como Brasil, Portugal e Holanda. O site também reúne títulos de 650 obras relacionadas a Palmares, caso do filme Ganga Zumba (1964), de Cacá Diegues, baseado no livro homônimo escrito por João Felício dos Santos (1911-1989), publicado pela editora Civilização Brasileira, em 1962. Por fim, na seção Mapas é possível visualizar a localização aproximada de alguns mocambos, vilas, aldeias indígenas, arraiais militares, sesmarias e trajetos de expedições mencionados nas fontes históricas. No decorrer da pesquisa a historiadora contou com apoio da Fapesp, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
A parte cartográfica foi elaborada em parceria com o historiador Felipe Aguiar Damasceno, autor da tese A ocupação das terras dos Palmares de Pernambuco (séculos 17 e 18), defendida em 2018, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Na pesquisa de doutoramento, Damasceno utilizou recursos de georreferenciamento, além de documentos holandeses e portugueses, para investigar, por exemplo, as dimensões territoriais de Palmares e a distribuição de sesmarias na região entre 1678 e 1775. “Boa parte da bibliografia produzida ao longo do século 20 e até mesmo nesse início de século 21 consolidou a ideia de que os mocambos naquele momento se localizavam principalmente no território atualmente ocupado pelo estado de Alagoas. Mas os documentos dos séculos 17 e 18 mostram que os assentamentos mais conhecidos, como Macaco, estavam concentrados entre a Zona da Mata e o Agreste do atual estado de Pernambuco”, afirma o historiador. “É importante notar que Palmares não ocupou uma única região ao longo de mais de um século de existência. Há deslocamentos e a relação entre os vários assentamentos muda com o tempo.”
Serra tombada
No século 20, Palmares e, sobretudo, Zumbi se transformaram em símbolos da luta por direitos do movimento negro no Brasil, como aponta Rosa Lúcia Lima da Silva Correia, professora da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e vice-coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi) da instituição. “O Grupo Palmares, fundado em 1971, em Porto Alegre, cunhou o 20 de novembro, dia da morte de Zumbi, como Dia do Negro em oposição ao 13 de maio, data da Abolição da escravatura. Mais tarde, em 1978, o Movimento Negro Unificado [MNU] rebatizaria a iniciativa como Dia Nacional da Consciência Negra”, exemplifica Correia.
Ao longo da década de 1980, intelectuais e lideranças do movimento negro, como a pensadora e feminista Lélia Gonzalez (1935-1994) e o ator, diretor e dramaturgo Abdias do Nascimento (1914-2011), reuniram-se na Ufal para articular o tombamento da Serra da Barriga, no município de União dos Palmares (AL). Em 1988, ano do centenário da Abolição da escravatura no país, o local passou a ser considerado Monumento Nacional. “Aquela geração de militantes entendia a Serra da Barriga como um espaço de salvaguarda da memória da luta negra por liberdade”, conta o historiador Danilo Luiz Marques, professor da Ufal e coordenador do Neabi. Não por acaso, os ativistas planejavam criar ali um museu – o projeto, entretanto, só foi concretizado em 2007, com a inauguração do Parque Memorial Zumbi dos Palmares.
Parte desses encontros foi gravada e os registros compõem o acervo do Neabi-Ufal, criado em 1980, como Centro de Estudos Afro-brasileiros (Ceab). Nos áudios é possível ouvir, por exemplo, as falas de intelectuais como o historiador Joel Rufino dos Santos (1941-2015) durante a mesa Significados de Palmares para a Luta Negra, mediada pelo sociólogo Clóvis Moura (1925-2003), criador do Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas (Ibea), em 1975. Ao fim, a cantora e atriz Zezé Motta interpreta o samba “Senhora liberdade”, composto por Nei Lopes (ver Pesquisa Fapesp n° 275) e Wilson Moreira (1936-2018). Além das gravações, o acervo abriga itens ligados à questão étnico-racial e ao movimento negro brasileiro e alagoano, produzidos nas últimas quatro décadas, como cartazes, correspondências e cenas de subida à Serra da Barriga por militantes, registradas pelo fotógrafo e ativista antirracista Januário Garcia (1943-2021). Atualmente, Marques desenvolve um projeto de digitalização desse material. “Nosso objetivo é elaborar um catálogo impresso e um banco de dados para manter essa memória viva”, finaliza o historiador.
ARTIGO
LARA, S.H. O território de Palmares: representações cartográficas e dimensões territoriais. Afro-Ásia, Salvador, n. 64, p. 12-50, 2021.
* Este artigo foi republicado do site Revista Pesquisa Fapesp sob uma licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o artigo original aqui.