25/01/2022 - 9:02
“Chamo a vossa atenção, senhores, para uma moléstia que tive ocasião de observar no Rio de Janeiro no começo do ano de 1864.” Começa assim um artigo publicado em junho de 1865 na Annaes Brazilienses de Medicina, revista da Academia Nacional de Medicina, escrito pelo oftalmologista paraense Manoel da Gama Lobo (1831-1883). É a primeira descrição feita no Brasil de uma doença que ele chamou de oftalmia brasiliana e hoje é conhecida como xeroftalmia ou hipovitaminose A, decorrente da falta de vitamina A. A deficiência desse micronutriente é um problema mundial ainda hoje: atinge cerca de 19 milhões de mulheres grávidas e 190 milhões de crianças em idade pré-escolar, a maioria na África e Sudoeste da Ásia, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Gama Lobo descreveu a evolução da doença, que destrói gradativamente as estruturas do globo ocular e pode causar cegueira, a partir da observação de quatro crianças escravizadas, entre 16 meses e 5 anos de idade. Muito magras, com diarreias intensas, tinham as pálpebras coladas, impedindo a abertura dos olhos, e a conjuntiva, a membrana transparente que recobre a parte branca do olho, seca. Mesmo tratadas com colírios e boa alimentação, todas morreram, no máximo em seis meses. A química Leonor Maria Pacheco Santos, da Universidade de Brasília (UnB), aponta o aparentemente único erro do tratamento: em uma das crianças, o médico achou que uma secreção do olho seria pus e o apertou para retirá-la, o que deve ter contribuído para agravar a perda da visão.
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Deterioração orgânica
Mas o médico paraense concluiu, corretamente, que a causa das alterações oculares era “a falta de nutrição conveniente e suficiente a que estão submetidos os escravos [sic] dos fazendeiros… o organismo pobre de princípios vitais não pode fornecer os princípios necessários para nutrição da córnea”. Em sua avaliação, a perda de visão era uma das consequências de uma profunda deterioração do organismo, que causava também bronquites crônicas, diarreias, fraqueza e prostração.
“Gama Lobo fez um trabalho notável, ao articular a fome e a miséria das crianças e de suas mães com os sintomas da deficiência visual, quando as vitaminas ainda não tinham sido descobertas”, diz o nutricionista Francisco de Assis Guedes de Vasconcelos, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ele escreveu com Santos um artigo sobre o médico paraense, publicado em 2007 na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos.
Somente em 1912 a química Marguerite Davis (1887-1967) e o bioquímico Elmer McCollum (1879-1967), ambos norte-americanos, identificaram na Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos, um micronutriente cuja falta limitava o crescimento de ratos mantidos em laboratório e produzia xeroftalmia. O inicialmente chamado fator acessório solúvel em gordura, depois renomeado como vitamina A – a primeira a ser descoberta – se mostrou importante para manter o funcionamento dos bastonetes, as células da retina que captam a luz noturna, para a hidratação da superfície ocular, incluindo a formação de lágrimas, para a renovação das células e para o desenvolvimento dos ossos, dos dentes e do cabelo.
Dieta inadequada
No livro Geografia da fome (Editora O Cruzeiro, 1946), o médico pernambucano Josué de Castro (1908-1973), além de reconhecer o mérito de Gama Lobo, observa que o primeiro a notar a cegueira noturna – uma das expressões da falta de vitamina A – entre soldados e pessoas pobres no Brasil foi o médico Willem Piso (1611-1678), que acompanhou o conde Maurício de Nassau (1604-1679) durante a ocupação holandesa em Pernambuco. O registro das lesões oculares, que ele atribuiu à má alimentação, faz parte do livro Historia Naturalis Brasiliae, que ele escreveu com o matemático e naturalista alemão George Marcgraf (1610-1644) e foi publicado em 1648 nos Países Baixos em latim. Confirmando as observações de Gama Lobo, em 1883, o também oftalmologista Hilário Soares de Gouveia (1843-1923), professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, encontrou negros escravizados em fazendas de café da então província de São Paulo também com cegueira noturna.
“Mesmo à luz dos conhecimentos da época, a dieta [dos escravizados] já era considerada inadequada”, comentou a historiadora Márcia Amantino, da Universidade Salgado de Oliveira, em um artigo publicado também em 2007 na História, Ciências, Saúde – Manguinhos. A alimentação básica, descrita por Gama Lobo em seu estudo, consistia em feijão ou abóbora cozidos com angu e, uma ou duas vezes por semana, carne-seca – muito pouco, segundo ele, para quem acordava às 3h e fazia serviço pesado até as 21h. “Se a alimentação fosse boa e eles fossem bem tratados não só as moléstias seriam em menor número como o trabalho seria duplicado em consequência da força dos trabalhadores”, comentou o médico em seu artigo. Ele observou que a doença era rara e a vida mais longa onde os negros recebiam uma boa alimentação, com peixe e frutas, como nas províncias do Amazonas, Pará, Rio Grande do Sul e Mato Grosso.
Maus-tratos
Inversamente, nas regiões produtoras de açúcar e café em geral não se dava atenção à alimentação e às doenças dos escravizados. Como retrato de uma época, Amantino cita Salazar, um negociante de escravizados em O escravocrata, peça de 1884 escrita por Artur de Azevedo (1855-1908): “Negro não tem licença para estar doente. Enquanto respira, há de poder com a enxada, quer queira, quer não. Para moléstia de negro, há um remédio supremo, infalível e único: o bacalhau [chicote de couro]. Deem-me um negro moribundo e um bacalhau, que eu lhes mostrarei se o não ponho lépido e lampeiro com meia dúzia de lambadas!”. A literatura tratou também das consequências da má alimentação na população brasileira, com obras como o romance A fome, de 1890, sobre a seca intensa dessa época no Ceará, do escritor Rodolfo Teófilo (1853-1932), observa Vasconcelos, da UFSC.
“Gama Lobo era um abolicionista e criticava os proprietários rurais que tratavam mal os escravizados. Ele dizia: ‘Enganam-se os fazendeiros que pensam que os negros são de outra natureza que não humana’”, comenta Santos. “Era um progressista, ligado à Escola Tropicalista Baiana, que reunia cientistas militantes”, reitera Vasconcelos. Depois de estudar nas faculdades de medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, Gama Lobo trabalhou como médico no Arsenal de Guerra da Corte, no Rio de Janeiro, e viajou para a Alemanha para se especializar em oftalmologia. “Ele, que já tinha uma índole inquieta, foi se burilando na Alemanha, ao entrar em contato com as duas grandes correntes da medicina na época, que ganhavam força na segunda metade do século XIX”, comenta o nutricionista e historiador José Divino Lopes Filho, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Ideias modernas
A teoria infecciosa, defendida pelo químico francês Louis Pasteur (1822-1895) e o microbiologista alemão Robert Koch (1843-1910), atribuía a microrganismos a origem de muitas doenças, a partir de evidências encontradas pelos dois. A outra associava as doenças a deficiências alimentares e foi influenciada pelas descobertas de três cientistas: o químico francês Antoine Laurent de Lavoisier (1743-1794), que associou a combustão (queima controlada) de alimentos com a respiração celular, medidas por meio de aparelhos que ele próprio inventara; o fisiologista alemão Max Rubner (1854-1932), que determinou em 1883 o poder energético de proteínas, carboidratos e gorduras; e o patologista holandês Christiaan Eijkman (1858-1930), que descobriu a origem do beribéri, resultante da falta de vitamina B1. Rubner recebeu o Prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia em 1919 e Eijkman em 1929. “Em vários momentos as duas teorias disputavam a origem das doenças, como no caso do beribéri, visto inicialmente como uma doença causada por microrganismos”, conta Lopes Filho. “Gama Lobo retornou para o Brasil com as ideias científicas mais modernas de sua época.”
No Rio, o médico paraense foi o primeiro chefe do Serviço de Olhos da Santa Casa da Misericórdia. Fez também estudos sobre a febre amarela e identificou outra doença ocular, a retinite sifilítica, derivada da sífilis, em 1863. No ano seguinte, descreveu um surto de oftalmia catarral, caracterizada por fechamento das pálpebras e inflamação da conjuntiva, ambas na Annaes Brasilienses de Medicina. Até morrer, aos 52 anos, em um navio ao voltar de mais uma viagem à Europa, publicou seus estudos em revistas médicas do Brasil, de Portugal e da Alemanha.
Riscos aumentados
Após a abolição da escravatura, em 1888, os relatos de cegueira por desnutrição escassearam, exceto nas épocas de secas intensas no Nordeste. No início dos anos 1980, em razão de uma forte estiagem, Santos encontrou crianças de até 2 anos com cegueira causada por deficiência nutricional no interior da Paraíba e no hospital da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em João Pessoa, como relatado em um artigo de maio de 1984 no Jornal de Pediatria. Os estudos ajudaram a embasar um programa nacional de redução da hipovitaminose A, criado em 1986, extinto em 1997 e recriado em 2005, com a distribuição de cápsulas de vitamina A para crianças com até 5 anos durante as campanhas de multivacinação, nas unidades básicas de saúde; o nutriente permanece por seis meses no fígado, que o libera aos poucos.
“Os índices de hipovitaminose A estão incomparavelmente menores do que no passado, mas o programa nacional ainda precisa chegar às comunidades mais pobres, sobretudo porque é essa população que sofre com a insegurança alimentar”, alerta Lopes Filho. Em 2019, de acordo com o Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani-2019) do Ministério da Saúde, a região que apresentou maior prevalência de deficiência de vitamina A em crianças de até 5 anos foi a Centro-Oeste (9,5%) e a menor a Sudeste (4,3%). No entanto, alerta Vasconcelos, o “desmantelamento do sistema público de saúde e dos programas sociais”, o aumento do desemprego e a pandemia de covid-19 aumentam o risco de insegurança alimentar – em 2017 e 2018, mais de 10 milhões de pessoas relataram ter passado fome no Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (ver Pesquisa Fapesp nº 297).
“A vitamina A tem efeitos sobre todo o organismo, por manter a integridade do revestimento interno do pulmão, dos intestinos e do globo ocular”, reitera Santos, uma das autoras de um estudo publicado em julho de 1994 na revista médica The Lancet mostrando redução de 23% de diarreias em crianças do município de Serrinhas, na Bahia, em comparação com o grupo-controle, após a suplementação vitamínica. Ela enfatiza a importância de consumir alimentos ricos em vitamina A, como manteiga e leite integral, além de legumes e verduras ricos em betacaroteno, que se transforma em vitamina A no organismo. “Além de cenoura, abóbora e manga, de cor amarelo forte”, diz, “temos outras fontes, como buriti, pequi e dendê. O óleo do buriti é uma das fontes mais ricas desse nutriente no mundo.”
* Este artigo foi republicado do site Revista Pesquisa Fapesp sob uma licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o artigo original aqui.