Nova estratégia explicita pretensões hegemônicas sobre a região. Para especialistas, interferência na política doméstica, como no Brasil, poderá ser tendência em outros países.Na sua nova Estratégia de Segurança Nacional, os Estados Unidos deixaram claras as suas intenções nos laços com as Américas. As explícitas pretensões hegemônicas norte-americanas na região agitam o tabuleiro latino-americano, embora os dez meses da presidência de Donald Trump já permitissem em alguma medida antecipá-las.

Já apelidada de “Doutrina Donroe” – um neologismo que combina Donald e Monroe – a estratégia destilada no documento revive a antiga Doutrina Monroe, de 1823, usada para justificar a aspiração dos EUA em se tornarem a principal potência ocidental. “Este ‘Corolário Trump’ à Doutrina Monroe é uma restauração sensata e potente do poder e das prioridades americanas,” diz o documento.

Além disso, o texto afirma que os EUA negarão a competidores externos “a capacidade posicionar forças ou outros meios de ameaça” ou “possuir ou controlar ativos estrategicamente vitais no nosso hemisfério”, referindo-se especialmente a China, Rússia e Irã.

O reposicionamento sucede o que o governo Trump chama de “anos de negligência” nas Américas. As últimas duas décadas foram marcadas por atenção intermitente dos EUA em relação aos vizinhos, sobretudo a partir dos ataques de 11 de setembro de 2001, quando a agenda norte-americana se voltou quase por completo ao Oriente Médio.

“Gostemos ou não, Trump é o primeiro presidente norte-americano que retoma uma visão estratégica em direção ao sul do Rio Bravo (que separa EUA e México) com um enfoque explícito e sustentado”, afirma Guillermo García, do Grupo de Comunicação e Política Externa do Conselho Argentino para as Relações Internacionais (CARI).

De volta ao “quintal” dos EUA

Já para Michael Shifter, especialista em política latino-americana e professor adjunto na Escola de Estudos Internacionais da Universidade de Georgetown, a “América Latina está mais no radar de Trump do que nunca”. No entanto, afirma, a estratégia de segurança do atual presidente não é claramente ancorada em “interesses nacionais ou estratégicos, ao contrário de governos anteriores”.

As consequências mais palpáveis, na sua previsão, poderão incluir a crescente “militarização e intervenção em processos nacionais eleitorais ou judiciais”, tal como evidenciou, entre outros, o caso do Brasil neste ano. A Casa Branca usou uma suposta perseguição ao ex-presidente Jair Bolsonaro pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para justificar o tarifaço contra produtos brasileiros.

O texto não cita especificamente o Brasil nem outros países latino-americanos. Tampouco aparece o conceito de democracia, ao contrário dos anos anteriores, o que, para especialistas, envia um sinal verde para líderes autoritários.

Outros temas centrais são a migração, o crime organizado e a influência de potências de fora do continente. “A era da migração em massa deve terminar. A segurança fronteiriça é o elemento principal da segurança nacional. Devemos proteger nosso país da invasão, não apenas da migração descontrolada, mas também de ameaças transfronteiriças como terrorismo, drogas, espionagem e tráfico de pessoas”, diz o documento, publicado na semana passada.

Para Maureen Meyer, vice-presidente para programas do Escritório de Washington para a América Latina, a “Doutrina Donroe” demonstra que “ao governo de Trump não interessa trabalhar com outros países para enfrentar temas globais, como a pobreza”. A especialista teme que os Estados Unidos retirem seu apoio a organizações de direitos humanos, jornalistas independentes e outros atores que trabalham para fortalecer o Estado de direito na América Latina.

Respostas diversas

Devido à fragmentação nas Américas, a resposta promete ser diversa e “dependerá de uma série de fatores, como a natureza dos líderes, sua orientação política, os interesses e capacidades de distintos países, sua dependência dos EUA e os vínculos econômicos e políticos com outros parceiros globais”, observa Michael Shifter.

Para García, que é também ex-porta-voz da chancelaria argentina, governos da região observam com atenção a diplomacia entre Trump e o presidente Javier Milei. Ainda não está claro se a aproximação se traduz em crescimento, investimento e maior previsibilidade, ele diz, acrescentando que disso “dependerá em boa medida a reconfiguração dos alinhamentos no hemisfério”.

O Brasil, por sua vez, “continuará impulsionando os BRICS – que hoje incluem o Irã – como instrumento para ampliar sua margem de manobra”, prossegue.

Já o México, em contrapartida, é um dos países que não parecem ter muitas opções além de assumir uma postura pragmática com Trump, devido a seus profundos laços com os EUA.

Como a nova estratégia de segurança define como aliados aqueles que cooperam para “controlar a migração, deter o tráfico de drogas e fortalecer a estabilidade e a segurança em terra e mar”, entram nessa categoria Argentina, El Salvador, República Dominicana, Paraguai, Peru, Equador e Guatemala. Cuba, Nicarágua e Venezuela, por sua vez, são considerados inimigos.