Quem pode garantir qual finalidade será dada a uma tecnologia? Seu bom ou mau uso é um dilema tão antigo quanto a própria humanidade. Numa palestra em São Paulo nos anos 1990, o psiquiatra Stanislav Grof, um dos pais da psicologia transpessoal, lembrou que a mesma lâmina cortante do bisturi pode matar ou salvar vidas. Da mesma forma, quando falam de magia, os esotéricos costumam afirmar que ela é uma só. É chamada de magia branca quando se destina à prática do bem, é magia negra quando se destina à prática do mal. Tanto no caso do bisturi quanto no da magia, o que vai caracterizar sua destinação positiva ou negativa, portanto, são as leis, a filosofia e a ética – e estas continuam a chegar sempre depois que as novidades começaram a ser usadas.

Há alguns anos, a velocidade das descobertas em biotecnologia e as ameaças nela contidas – como a de uma sociedade que discriminasse a partir do patrimônio genético do indivíduo, tema do filme Gattaca – Experiência Genética – impulsionaram a bioética, a ética ligada às ciências da vida. A seguir, o progresso dos exames do cérebro por máquinas de ressonância magnética funcional por imagens (MRI, na sigla em inglês) deu origem à sua parenta próxima, a neuroética. Definida pelo neurocientista Roberto Lent, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como “a interface entre a ética, a neurociência e as neurotecnologias”, a neuroética já nasceu com muito trabalho pela frente.

A nova disciplina fez sua estréia em uma conferência realizada nos Estados Unidos em 2002. Depois disso, as universidades de Stanford e da Pensilvânia (ambas nos EUA) criaram os primeiros centros de pesquisa dedicados ao tema naquele país. A crescente importância da área levou um grupo de psicólogos, advogados e filósofos norte-americanos a fundar no ano passado a Neuroethics Society.

Como de hábito, as pesquisas na leitura de imagens do cérebro começaram com as melhores intenções. A meta era descobrir qual área cerebral estava lesionada e, se possível, testar alternativas para solucionar ou amenizar o problema. Esse é o caminho trilhado, por exemplo, por pesquisas que buscam devolver movimentos a pessoas paralisadas ou permitir que se escreva num computador a partir de comandos cerebrais. Mas não demorou para outras possibilidades serem vislumbradas por empreendedores atentos.

Em fevereiro, neurocientistas do Instituto Max Planck de Cognição Humana e Ciências do Cérebro, de Leipzig (Alemanha), divulgaram que, por meio da MRI, não apenas localizaram regiões do cérebro na qual surgem determinados pensamentos, mas também puderam analisá-las e verificar se os pensamentos estavam ocorrendo. Eles detectaram com acerto 70% dos casos nos quais era solicitado a um voluntário que adicionasse ou subtraísse dois números que piscavam numa tela.

NA OCASIÃO, o autor do relatório, John Dylan-Haynes, comparou o avanço obtido à situação de um homem que, de mero localizador de livros, passa a poder ler seu conteúdo. Ele ressalvou que ainda está longe o dia em que um aparelho lerá com facilidade pensamentos aleatórios. “Mas o que podemos fazer é ler algumas coisas bem úteis para aplicações práticas, tais como intenções, atitudes ou estados emocionais simples”, disse. “O que estamos descobrindo é que agora somos capazes de ler o cérebro em situações de sim-ou-não.”

Embora a máquina sofisticada de leitura cerebral ainda seja um sonho, é exatamente a possibilidade de ela existir que assusta os estudiosos da neuroética. Dylan-Haynes ressaltou que entre cinco e dez anos já poderiam surgir aplicações simples desse processo, como a leitura da atitude de um candidato a emprego numa entrevista ou do teste das preferências dos consumidores. Para outras empresas, no entanto, esse período pode ser encurtado.

“EMBORA A MÁQUINA DE LEITURA CEREBRAL AINDA SEJA UM SONHO, É A POSSIBILIDADE DE ELA EXISTIR QUE ASSUSTA”

A norte-americana Cephos Corporation deverá ter dentro de poucos meses um detector de mentiras 90% confiável, assegura seu diretor-executivo, Steven Laken. Segundo ele, o produto teria clientes certos nas comunidades de inteligência. Novidades também foram prometidas para breve em termos de mensurar a compatibilidade de candidatos a sócios, a honestidade de cônjuges ou a escolha de determinada marca de produto por um consumidor. Essa rapidez inquieta Judy Illes, diretora do programa de neuroética da Universidade de Stanford. “Não é tão futurístico imaginar um empregador capaz de testar quem seria um bom integrante de equipe, um líder ou um seguidor”, ela afirma. “O potencial de abuso dessa tecnologia é imenso.”

Como as leis ainda não estão preparadas para as situações abertas pela leitura do cérebro, as dúvidas vão brotando. Em princípio, parece abusivo fixar eletrodos no crânio de alguém contra sua vontade – mas e se um promotor exigir que um acusado passe por um detector de mentiras que use essa tecnologia? Um candidato a um emprego numa empresa importante se recusaria a passar por uma leitura cerebral se ela fosse pré-requisito para o cargo? Pais poderiam fazer testes desse gênero para saber se seus filhos estão envolvidos com drogas?

Além disso, o entusiasmo com a nova tecnologia pode ocultar erros importantes. Em uma recente entrevista à revista Veja, Roberto Lent exemplificou essa situação com o detector de mentiras: segundo ele, nem mesmo um aparelho que leia a mente teria o êxito de 100%, necessário para se garantir que uma pessoa é inocente ou culpada. “Injustiças terríveis podem ser cometidas se esse método for entronizado como infalível”, observou.

“INJUSTIÇAS TERRÍVEIS PODEM SER COMETIDAS SE ESSE MÉTODO FOR ENTRONIZADO COMO INFALÍVEL”

Tal como enxadristas, profissionais como Judy Illes e sua equipe procuram prever os próximos passos na área para alertar os cientistas sobre as implicações envolvidas. “Tentamos identificar esses focos de interesse e ajudar os pesquisadores a ficar atentos sobre como o trabalho deles pode ser usado, inclusive para propósitos nefastos”, comenta ela.

DE SEU LADO, algumas empresas da área prometem uma conduta eticamente irrepreensível. A Human Bionics não só contratou Judy para prestar consultoria como produziu um denso manual de política ética, que mostra o que seus funcionários podem extrair das imagens e quem pode acessá-las sem autorização judicial.

Mas não adianta só contar com atos isolados de boa vontade. É preciso definir uma política nessa área, que virá apenas a partir de um debate multidisciplinar de urgência indiscutível. Felizmente, em países como os Estados Unidos esse trabalho parece já ter saído do zero. Com a adequada discussão do tema, pode-se chegar a resultados animadores, diz Alan Leshner, dirigente da American Association for the Advancement of Science: “(…) assim, a ciência pode avançar e a sociedade pode se beneficiar do tremendo potencial de ser capaz de olhar dentro do cérebro de um indivíduo vivo, que respira e se comporta de forma única, e observar a sua mente em ação.”