Entrega de armas é exigência de EUA e Israel. No entanto, grupo palestino reforça presença na Faixa de Gaza após acordo de cessar-fogo.À medida que o cessar-fogo entre Hamas e Israel se mantém, forças de segurança do grupo radical palestino voltaram às ruas de Gaza, entraram em confrontos internos com organizações rivais e divulgaram vídeos executando supostos criminosos. Segundo relatos da imprensa israelense, 32 pessoas teriam sido mortas nestes embates desde o início do acordo de paz. O Hamas justifica a ação como uma tentativa de restaurar a lei e a ordem nas áreas de onde as tropas israelenses se retiraram.

A demonstração de força pode ameaçar a trégua em um momento em que todos os reféns vivos capturados no ataque de 7 de outubro de 2023 foram soltos. As questões centrais da próxima fase do acordo de paz são o desarmamento do Hamas e a transferência de poder em Gaza. As partes divergem consideravelmente sobre os dois pontos, o que pode fragilizar o cessar-fogo.

Na terça-feira, a tensão sobre as tratativas se exacerbou após ataques atribuídos a Israel matarem seis palestinos, segundo autoridades de saúde de Gaza. No dia seguinte, Israel afirmou que um dos corpos devolvidos pelo Hamas como parte do acordo não seria de um refém. O governo israelense chegou a indicar que reduziria a quantidade de ajuda distribuída no território.

Desarmamento é visto como prioridade

O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, afirmou repetidamente que a guerra só terminará quando o Hamas, classificado como organização terrorista pelos EUA e diversos países, for desmantelado.

“Praticamente toda a região aprovou o plano de desmilitarizar Gaza imediatamente, desarmar o Hamas e não ameaçar mais a segurança de Israel”, disse ele em seu discurso no Knesset, o parlamento israelense, nesta semana.

O plano de cessar-fogo do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, também tem essa previsão. Mas o líder americano deu declarações contraditórias sobre esse aspecto. No voo para Israel, ele explicou que seu governo havia permitido que o Hamas se rearmasse temporariamente para supostamente trazer a ordem para Gaza depois de meses de guerra.

Para o especialista em estudos islâmicos da Universidade Hebraica de Jerusalém, Simon Wolfgang Fuchs, o Hamas passa uma mensagem explícita ao se impor em Gaza logo após o recuo israelense. “O Hamas está deixando claro que não desapareceu da Faixa de Gaza. Pelo contrário, continua reivindicando um papel na região.”

De acordo com uma análise do think tank americano Atlantic Council, o desarmamento do Hamas ainda está longe de ser uma realidade. Enquanto a organização continuar a existir, seja como grupo armado, movimento político ou mesmo como ideia, existe um risco considerável de que recupere a sua influência em Gaza, diz o texto.

O Hamas considera seu armamento como garantia de sua existência, tanto militar quanto política e simbólica, afirma Simon Engelkes, diretor do escritório da Fundação Konrad Adenauer em Ramallah. “Sem uma contrapartida política concreta, ele provavelmente não concordará com tal medida. As ‘garantias de segurança’ do presidente Trump de que a guerra na Faixa de Gaza não continuará após o acordo de cessar-fogo, não serão suficientes neste momento.”

Mesmo que as estruturas militares do Hamas tenham sido fortemente enfraquecidas durante a guerra, suas redes e sua presença visível em Gaza permaneceram intactas, continua Engelkes. “Isso garante sua sobrevivência política a curto e médio prazo.”

Quem é responsável pela segurança na Faixa de Gaza?

O desarmamento total do grupo palestino é de difícil execução, já que a segurança interna da Faixa de Gaza é feita por seus militantes. Depois de assumir o governo da região em 2007, as lideranças do grupo centralizaram as forças policiais e a jurisdição do território.

Ainda não se sabe quem organizará essas tarefas no futuro em um eventual acordo. Países mediadores como Egito e Jordânia anunciaram que preparam até 5 mil agentes de segurança para uma futura “força internacional de estabilização” em Gaza. Agentes da Autoridade Palestina, que governa a Cisjordânia, também seriam envolvidos no arranjo.

A ideia vem sendo rejeitada pelo Hamas. O controle de Gaza já foi alvo de disputas internas, com o Hamas e o Fatah, ligado à Autoridade Palestina, entrando em confrontos mortais nos anos 2000. Acordos posteriores, porém, amenizaram a relação entre os grupos.

A proposta também pode ser vetada por Israel, diz o especialista em estudos islâmicos Fuchs. Isso porque o governo em Jerusalém não quer conceder à Autoridade Palestina nenhum papel em Gaza. “Nesse sentido, ainda não se sabe como se chegará a um acordo sobre essa questão – e também em quais mãos ficarão os serviços de segurança.”

Novas ameaças

Observadores agora discutem o papel que o Hamas deve ter nesta transição. O presidente da França, Emmanuel Macron, alertou para uma ameaça contínua por parte da milícia. “Um grupo terrorista com milhares de combatentes, túneis e esse tipo de armamento não se destrói da noite para o dia”, afirmou após a assinatura do cessar-fogo em Sharm el-Sheikh, no Egito. O primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, argumentou que seu país está pronto para ajudar no processo de desarmamento.

Contudo, a verdadeira disputa ainda está por vir, avalia Engelkes. “Ela não diz respeito apenas à questão das armas, mas também ao controle político e à legitimidade: quem falará por Gaza no futuro, e com que autoridade?”

O governo alemão, por exemplo, é contra a continuidade da presença política do grupo palestino. No entanto, seria arriscado ignorar os interesses do Hamas, alertou o presidente do Serviço Federal de Inteligência da Alemanha, Martin Jäger, em uma audiência no Parlamento alemão. Se o Hamas não participar de um governo de transição, for expulso ou for empurrado de volta à clandestinidade, haverá um “risco real” de que ele passe a agir fora de Gaza, defendeu. “Isso afetaria não somente a região árabe, mas certamente também a Europa.”

Ouvido pela agência de notícias AFP, o membro do escritório político do Hamas, Hossam Badran, rejeitou qualquer tratativa que expulse seus membros de Gaza. “Falar sobre expulsar palestinos, sejam eles membros do Hamas ou não, de sua terra é absurdo e sem sentido”, disse no último domingo.