Série “Adolescência” denunciou que grupos misóginos oferecem violência como resposta a dilemas dos jovens. Mas iniciativas no Brasil querem mostrar que “ser homem” é um conceito plural que inclui modelos mais positivos.Para muitos meninos, um dos primeiros contatos com as dinâmicas dos papéis de gênero deles esperados vem através de uma reprimenda: “vira homem!”. A expressão condena qualquer tipo de atitude que represente um desvio do modelo tradicional de masculinidade, associado a atributos como força, virilidade e dominância.

Mas os meninos crescem e descobrem que, na sociedade ocidental do século 21, muitos dos códigos de comportamento que aprenderam estão sendo questionados. “Ser homem”, um conceito historicamente singular, agora pode carregar múltiplos significados.

Em casos extremos, o dilema atrai jovens a comunidades virtuais da chamada “machosfera”, onde o submundo dos incels oferece misoginia, ressentimento e violência como resposta a essas questões.O fenômeno ganhou visibilidade nas últimas semanas após ter sido retratado na série Adolescência,que tem quebrado recordes de audiência na Netflix.

Na outra ponta da equação, porém, um grupo de homens quer mostrar que há outros caminhos disponíveis. Eles defendem que é possível exercer uma masculinidade que não exija força física, superioridade financeira ou desejo sexual ilimitado. E que demonstrar vulnerabilidade e pedir ajuda não devem ser vistos como comportamentos exclusivos às mulheres.

“Isso não te torna menos homem”, afirma Guilherme Nascimento Valadares, cofundador e diretor de pesquisa do Instituto PDH. A sigla é uma referência ao termo Papo de Homem, site que há quase duas décadas apresenta conteúdos e discussões sobre temas importantes à experiência masculina.

Uma conversa de homem para homem

O próprio Guilherme teve que transformar o modo de enxergar o mundo para entender que tipo de papel ocuparia na sociedade. O mineiro cresceu em uma família brasileira típica, em que o gênero define os traços de personalidade de uma pessoa. Mas ele era sensível e introspectivo. “Eu era rejeitado pelos outros meninos e também pelas meninas porque era fracote, torto, espinhoso, nerd”, conta.

Ao se tornar adulto, reproduziu comportamentos que poderiam encaixá-lo no padrão mais aceito. Fisicamente mais forte, Guilherme tentou assumir uma postura de controle, inclusive em relação a mulheres. Quando percebeu que essas questões eram comuns a outros homens, em 2006, ele se juntou a amigos para criar um espaço de discussões de assuntos pouco abordados na mídia tradicional. Era o início da história do PapodeHomem.

Do blog, surgiu a ideia de criar um instituto para pesquisar as transformações das masculinidades, além de questões como diversidade, inclusão e saúde mental. Os estudos servem de base para documentários, livros, palestras e cursos de treinamento em empresas.

Para o fim do ano, junto com o Pacto Global da ONU no Brasil, o PDH prepara o documentário Meninos: Sonhando os Homens do Futuro, com base em uma ampla pesquisa nacional que ouviu adolescentes sobre as dores e as alegrias dessa fase da vida. O trabalho busca mapear questões caras aos meninos. “Os adultos vão gostar de ver, todo mundo que tiver filho adolescente vai gostar, mas o nosso alvo são os meninos adolescentes. Estamos fazendo algo com a linguagem deles”, explica.

Com os resultados dos estudos, o instituto está elaborando um programa curricular para escolas e espaços esportivos que reflita os pontos levantados pelos meninos durante a pesquisa. A ideia é realizar rodas de conversa, grupos de treinamento emocional e atividades esportivas focados em ensinar equilíbrio emocional e enfrentar o preconceito e o assédio.

As iniciativas contestam a perspectiva de uma masculinidade singular, sem apresentar uma solução dicotômica. “Também não precisa cair num estereótipo de que ser homem significa ser sempre voz mansa, sensível, calminho, que não pode ser assertivo”, explica Guilherme.

No lugar disso, o objetivo é promover uma “conversa honesta” com os homens sobre como lidar com a força, trabalhar a competitividade, desenvolver amizades saudáveis, entre outros aspectos.

“Estamos falando de homens que vão ser emocionalmente mais equilibrados, compassivos, inclusivos, que sabem o que é responsabilidade consigo mesmo com seu corpo, com a casa, com os amigos, com as amigas”, lista Guilherme.

Amor de pai: o primeiro passo na construção da masculinidade

A construção desses referenciais começa ainda na infância, com o pai como o primeiro espelho. Para o psicanalista Thiago Queiroz, esse é um processo iniciado de dentro, pela autoconsciência sobre os padrões masculinos perpetuados. “A partir do momento em que entendo que preciso reconstruir o tipo de homem que sou, eu consigo me tornar um pai mais sensível, consciente, e cuidador, mais do que provedor apenas”, afirma.

Pai de quatro crianças, incluindo dois meninos, Queiroz compartilha visões sobre o desenvolvimento de uma paternidade mais afetiva no site Paizinho, Vírgula. O influenciador produz vídeos, podcasts e textos em que discute maneiras de criar relações mais saudáveis com os filhos e, em particular, de excluir a violência na criação masculina.

A chave para uma criação saudável é pela disposição em se manter emocionalmente disponível para os filhos, inclusive na adolescência, avalia Queiroz. Na ausência do afeto paterno, os jovens buscam respostas para suas incertezas em outros lugares e podem encontrá-las de maneira distorcida na internet. “É importante que o pai expresse amor também para os filhos homens”, argumenta o influenciador.

Diálogo como ponto de partida

Além do ambiente doméstico, a escola também tem papel importante nesse processo. Nela, os jovens têm a primeira validação de que estão no caminho para se tornarem homens, afirma o consultor de diversidade e gênero Caio César. “Meninos emulam outros meninos, porque a masculinidade é confirmada ou colocada em xeque por outros homens”, diz.

O carioca era professor de geografia quando percebeu que as estruturas inflexíveis de gênero são prejudiciais não apenas às meninas, mas também aos meninos. Eles crescem sob a pressão da performance, com dificuldades para demonstrar afeto ou vulnerabilidade.

Para tentar romper esse ciclo, Caio César decidiu mudar a postura com os alunos. Deu abraços, proferiu elogios e demonstrou abertura para a conversa. O resultado foi uma relação mais afetiva e saudável. “É possível ser homem sem exercer uma violência para si mesmo ou para outras pessoas”, afirma.

Hoje, Caio César atua na consultoria de assuntos de gêneros para eventos, empresas, órgãos públicos e outras entidades interessadas a explorar esse debate. Até o ano passado, ele participava do projeto Memoh, que organiza rodas de conversas para discutir questões próprias da masculinidade.

O diálogo costuma ser mais fluído quando há grupos formados exclusivamente por homens, que se sentem mais confortáveis para discutir os assuntos mais livremente. “É muito importante construir espaços onde essas questões possam ser trabalhadas de uma forma mais aberta e profunda”, defende.

Também de um lugar de escuta, o educador Leonardo Oshiro mensalmente promove espaços para o compartilhamento de reflexões entre homens. São encontros de cerca de três horas em que os participantes são convidados a discutirem temas que constituem a formação de identidades masculinas.

Oshiro também é um dos fundadores do Projeto Okara, que leva exercícios semelhantes para jovens em escolas públicas e privadas em São Paulo. O projeto está suspenso desde que o educador se mudou para Osasco, no interior do estado, mas ele ainda busca apoiadores para retomá-lo. “É crucial que haja ambientes seguros para que esses jovens possam se expressar de maneira autêntica, na sua potência, sem o medo e a insegurança de estar sob olhares que julgam”, destaca.

A Caixa dos Homens

Por trás dessas iniciativas, há uma tentativa de combater a ideia de uma “caixa dos homens”. O conceito foi criado na década de 1980 pelo educador Paul Kivel, que cita um conjunto de normas sociais que define se alguém pode ser considerado um “homem de verdade”.

Dentro da caixa, estariam os fortes, os controladores, os que se afastam de qualquer traço visto como feminino. Fora dela, um amplo universo de comportamentos comumente dissociado do padrão heterossexual.

Para Caio César, no entanto, o mais importante não é buscar um modelo único que determine o novo “cara ideal”. “Existe uma série de outras questões envolvidas nisso, de raça, classe, sexo, sexualidade. Não dá para trilhar um único caminho”, ressalta.

Homens negros, por exemplo, tendem a estar sujeitos a expectativas ainda mais extremas de uma conduta masculinizada, já desde a infância. Uma pesquisa do Instituto PDH indicou que cinco em cada dez dos meninos entrevistados tinham dúvidas sobre o amor do pai. Entre os diferentes recortes, os rapazes negros (49%) foram os que mais tinham incerteza sobre o amor paterno.

“Dentro da sua construção de masculinidade, esse homem vai enfrentar muito mais violências, pelas questões estruturais, sociais e de raça, do os que homens brancos e isso pode afetá-lo ainda mais na maneira como ele forma a sua masculinidade”, explica Guilherme.

Já os homens LGBTQ+ buscam definições não necessariamente alinhadas aos comportamentos ligados à heterossexualidade. Há também diferenças regionais, econômicas, geracionais. “Eu não quero trocar a antiga caixinha por uma nova, ou seja, deixa aqui seu modelo desatualizado e pega um novo também um pouquinho claustrofóbico”, resume Guilherme.

Afinal, o que significa ser homem?

A falta de uma saída única, no entanto, poderia amplificar as incertezas dos jovens que buscam decifrar a dúvida central na transformação de meninos em adultos: o que exatamente significa ser homem no Brasil do século 21?

Por muito tempo, a resposta se resumia aos imperativos de dominar e conquistar. Mas para Guilherme, é possível adotar uma nova perspectiva: “Pode ser muito interessante experimentarmos a ideia de servir e cuidar”, diz.

“Ser homem significa se reconhecer como homem, mas não um reconhecimento individualista, ocidental, focado no sucesso. É um reconhecimento em rede, cercado de referências positivas”, acrescenta.

O consultor Caio César ainda vê o conceito em construção, mas afirma que esse é um debate coletivo que precisa levar em consideração particularidades individuais. “Nós vamos cometer erros, haverá percalços, mas esse é um caminho possível e que é positivo para os homens”, destaca.