09/09/2025 - 7:43
Óbitos no trânsito crescem desde 2019 e evidenciam descompasso entre legislação e aplicação de políticas municipais. Em Fortaleza, programa Visão Zero gera resultados positivos.A morte da socióloga Marina Harkot, atropelada enquanto andava de bicicleta em novembro de 2020, em São Paulo, deixou uma marca no contraditório panorama brasileiro de óbitos no trânsito.
Naquele ano, o número de mortes nas ruas e rodovias brasileiras voltou a crescer após quase uma década de redução. A inflexão ocorreu apesar do confinamento imposto pela pandemia da covid-19 e a despeito de o país possuir um robusto arcabouço legal que cumpre quatro das cinco boas práticas elencadas pelas Nações Unidas para segurança viária.
Para Felipe Burato, cofundador do projeto Pedale como Marina, que homenageia a socióloga, as políticas públicas municipais não têm como foco a proteção dos usuários mais vulneráveis no trânsito. O descompasso aumenta a sensação de impunidade, diz ele, sentimento agravado pelos quatro anos que se passaram entre o atropelamento e a condenação do motorista, que dirigia embriagado.
“Te tira um pouco da confiança de estar nas ruas. Com a bicicleta e mesmo a pé. Você vai ficando com mais medo pela ideia que ‘pode se fazer o que quiser’. Era uma impressão que dava, de que qualquer um pode me matar aqui”, conta Burato à DW.
No período retratado por Burato, a situação no trânsito brasileiro se deteriorou. Em 2019, foram 31,9 mil vítimas fatais em todo o país. A cifra alcançou 32,7 mil no ano seguinte e continuou a crescer até 2023, atingindo 34,9 mil óbitos, segundo os dados consolidados mais recentes disponibilizados pelo Datasus.
O índice de mortes por 100 mil habitantes registrou consequente alta no mesmo período, de 15,2 para 16,2, superando a média latino-americana. O salto pressionou o Sistema Único de Saúde (SUS), que também viu um aumento nos gastos com internações por sinistros de trânsito.
Na prática, mais brasileiros morreram em sinistros com veículos do que por armas de fogo em 2023. Com 123 milhões de veículos nas ruas, o Brasil passou a ocupar o quarto lugar no ranking mundial de mortes deste tipo, atrás apenas de Índia, China e Estados Unidos, segundo levantamento global da Organização Mundial de Saúde (OMS) que considera números absolutos.
“Nós temos uma legislação que é considerada uma das melhores do mundo, o nosso Código de Trânsito, tem mais de 25 anos, é super bem estruturado”, avalia o CEO do Observatório Nacional de Segurança Viária, Paulo Guimarães.
“Mas há deficiência na aplicação dessa legislação. As pessoas, por um lado, não têm consciência do risco que estão correndo e, por outro lado, não sentem o efeito da fiscalização por conta dessa impunidade”, continua.
O papel dos municípios
O secretário nacional de Trânsito, Adrualdo Catão, argumenta que os números brasileiros não fogem da curva de países que são similares em indicadores socioeconômicos.
O Brasil conta com um Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito, o Pnatrans, lançado há sete anos sob a meta de reduzir as taxas de mortalidade pela metade até 2030. Mas o plano não tem efeito coercitivo, e seu desdobramento dificultado nas cidades, autônomas para definir projetos locais, afasta o país de atingir esse objetivo.
Catão defende que a baixa implementação das orientações nacionais em nível municipal ajuda a explicar a realidade brasileira. Ao menos 80% da malha viária do país está sob gestão das mais de 5,5 mil prefeituras do país.
O problema não está somente nas capitais, que concentraram 18% das mortes no trânsito entre 2013 e 2023. Segundo a Confederação Nacional de Municípios (CNM), apenas em cada três municípios brasileiros têm um órgão responsável pelo trânsito local.
“Nós vamos levar em conta uma meta proporcional de redução [de mortes]. E se não atingir a meta, nós vamos acionar os órgãos de controle. É assim nós estamos fazendo”, afirmou Catão à DW, pontuando que a atual gestão passou a tratar o Pnatrans como uma ferramenta de compliance para forçar sua aplicação.
Desmonte de políticas
Bons exemplos que chegaram a resultados positivos no Brasil indicam que mesmo diante de problemas estruturais, cidades de grande porte podem reverter esta tendência (leia mais abaixo). No entanto, especialistas entendem que a paralisia das políticas municipais reflete um desmonte mais amplo iniciado na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Além de mirar os radares nas rodovias federais, suas principais mudanças vieram na alteração do Código de Trânsito brasileiro, em 2020. O novo regramento ampliou o prazo para renovação da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e o número de pontos necessários para suspendê-la. Também flexibilizou as punições a infrações leves e médias.
“A gente tinha na gestão passada um presidente que falava de trânsito. Só que ele falava contra o trânsito, contra a segurança. A gente teve problemas de regressão, no âmbito institucional, com a mudança no Código de Trânsito”, afirmou Catão.
O novo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, porém, não reverteu os principais retrocessos apontados e extinguiu a cobrança do seguro obrigatório que garantia assistência à saúde de vítimas de trânsito, o DPVAT.
“Sua extinção afetou o SUS, que perdeu um volume considerável de recursos para cobrir os custos com atendimento às vítimas”, reforçam os pesquisadores do Atlas da Violência, publicação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
“Em alguns pontos o [atual] Congresso conseguiu melhorar. Mas no fim das contas o infrator terminou sendo beneficiado”, argumenta Catão sobre o Código de Trânsito. O secretário entende que o ambiente politizado dificulta a discussão. “O que a gente faz é evitar novos retrocessos.”
Mais recentemente, porém, o Ministério dos Transportes passou a defender o fim da obrigatoriedade da frequência em autoescolas para a obtenção da CNH como forma de reduzir o custo de formação e o número de pessoas dirigindo sem habilitação. Críticos veem a medida como facilitadora de acidentes.
Formação urbana e aumento da frota de motocicletas
O descompasso entre políticas nacionais e locais revela que o óbito nas ruas brasileiras não é casualidade, defende o consultor em mobilidade urbana e professor do Insper, Sérgio Avelleda. “A morte é resultado de uma ação ou omissão de políticas públicas”, avalia.
Assim como Paulo Guimarães, do Observatório Nacional, ele vê a formação das cidades brasileiras e a baixa qualidade do transporte público como agravantes.
Tal dinâmica urbana, que empurra moradores à periferia, somada às barreiras de acesso à cidade, intensifica a busca por motocicletas, por exemplo, cuja frota passou de 830 mil para quase 1,3 milhão na última década. Em 2023, quase 39% dos acidentes com mortos envolveram motociclistas, aponta o Atlas da Violência.
Esse é um dos desafios de São Paulo, cujo elevado número de habitantes ajuda a engrossar os dados nacionais. Em 2024, a capital paulista voltou a atingir mil mortes no trânsito, regredindo ao observado em 2015, segundo levantamento do Detran-SP.
Em nota, a prefeitura de São Paulo diz que trabalha para ampliar a segurança dos motociclistas, instalando a faixa exclusiva para motos em alguns pontos da cidade. Nestes trechos, segundo a gestão, o óbito de motociclistas caiu 47% entre 2023 e 2024.
Pauta anti-radar vira trunfo eleitoral
Outro consenso na literatura internacional é que o controle da velocidade é a primeira medida para reverter o problema. “Tem muitas formas de você fazer o carro ter mais cuidado na sua circulação sem reduzir a velocidade direta. Por exemplo, a fiscalização”, afirma Cauê Jannini, diretor administrativo da ONG Cidade a Pé.
Foi a velocidade combinada ao consumo de álcool que vitimou Marina Harkot. Nos anos seguintes, a fórmula se repetiu em outros casos de repercussão nacional.
Apesar disso, o radar é tomado como vilão, e disputar sua implementação se tornou um trunfo eleitoral. “A fiscalização tem sido, talvez por questões populistas, de pegar mal para quem está tentando se eleger, largada. Porque não é popular aplicar multa”, alerta Jannini.
Avelleda vê uma cultura de leniência com a infração nestes cenários. “Quando você implanta radar, as pessoas dizem que você está criando a indústria da multa. Talvez exista a indústria da multa, mas como toda a indústria, ela precisa de insumos. O insumo da indústria da multa não é o radar, é a infração de trânsito”, afirma.
Tal realidade se traduz nas campanhas eleitorais. Uma pesquisa da DW mostra que, dos 26 prefeitos eleitos para comandar as capitais brasileiras em 2024, dez não incluíram política específica de segurança viária em seus planos de governo apresentados durante o ciclo eleitoral. Entre os que mencionaram o tema, a maioria propôs apenas um único projeto para os próximos quatro anos.
Experiência internacional já funciona no Brasil
A comparação com países ricos se tornou lugar comum para justificar o desafio enfrentado por nações em desenvolvimento. Mas municípios brasileiros têm caminhado na contramão desta tendência.
“Por mais bem treinado que você seja, mais bem educado, um dia você vai sair nervoso, você vai sair cansado”, defende Avelleda. Reconhecer tal problema exige uma reformulação: “Você é obrigado a desenhar ruas para que as pessoas não corram, não passem de limites seguros de velocidade”, diz.
Desenho urbano, gestão de velocidade e priorização da segurança são princípios do programa Visão Zero, lançado na Suécia em 1997, que se desdobrou em taxas quase nulas de mortes no trânsito de alguns municípios europeus.
No Brasil, esse programa virou parâmetro do plano de governo da prefeitura de Fortaleza, no Ceará, que reduziu as mortes pela metade em dez anos. “Não adianta a gente querer educar só o condutor, não adianta a gente querer só melhorar vias. Foi um esforço multidisciplinar”, afirma o professor de Engenharia de Transportes da Universidade Federal do Ceará, Flávio Cunto.
A proposta foi reverter a lógica de fluidez do automóvel para apostar em fiscalização e intervenções no espaço urbano. Ficou estabelecido que as mudanças não poderiam ser pontuais, mas sistêmicas.
“Quando [o órgão de trânsito] começa a entender essa questão da segurança viária, há uma mudança de foco bem radical”, defende André Matos, gerente de operação e fiscalização de trânsito de Fortaleza, onde o rearranjo municipal atravessou três gestões municipais sob queda no número de vítimas fatais. A tendência se reverteu apenas em 2024.
“Áreas que foram integradas aos pedestres, áreas de bairros onde o trânsito era caótico, sem sinalização, e a gente, com intervenções simples, devolveu o espaço à população”, explica Cunto sobre a experiência do urbanismo tático.
“Os principais elementos são pinturas no revestimento, na calçada, no pavimento apoiada por elementos de paisagismo, como jarros, como balizadores”, continua. Um dos exemplos aplicados em Fortaleza foi o levantamento de interseções não semaforizadas para reduzir a velocidade.
Para Felipe Burato, a construção de uma cidade que valorize a vida pode ocorrer mesmo nos grandes municípios, desde que o Brasil inverta a lógica de velocidade e foco no veículo. “Hoje o modelo de cidade que a gente tem é um modelo carrocrata. É o direito do carro de estar em qualquer lugar e tudo o que está em volta é supérfluo. E na verdade, a cidade que Marina e a gente vislumbra é uma cidade das pessoas”, argumenta.
Colaborou Rodrigo Menegat