Comissão Europeia vê oportunidade histórica para ratificar tratado de livre comércio, mas resistência de ambientalistas e agricultores do bloco não diminuirá tão cedo.Ambientalistas e agricultores frequentemente estão em lados opostos no debate sobre políticas públicas, mas na União Europeia (UE) o acordo de livre comércio com o Mercosul uniu ambos em oposição ao texto.

A Comissão Europeia deu na quarta-feira (03/09) um passo importante para ratificar o acordo, que vem sendo negociado há cerca de três décadas. Ele valeria para os 27 países da UE e os quatro membros fundadores do Mercosul: Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai.

No entanto, o acordo enfrenta resistência de uma ampla gama de entidades e de políticos europeus, que vão tentar bloqueá-lo.

O que está em jogo?

A iniciativa visa facilitar o fluxo de mercadorias entre os países-membros da UE e os países sul-americanos.

O acordo criaria uma das maiores zonas comerciais do mundo, com mais de 780 milhões de pessoas, e ajudaria a amenizar o impacto das tarifas anunciadas pelo presidente dos EUA, Donald Trump, abrindo novas oportunidades de exportação.

“É provavelmente um dos acordos comerciais mais significativos e com maior impacto econômico já firmados”, disse Ignacio Garcia Bercero, pesquisador sênior do think tank Bruegel, com sede em Bruxelas, e ex-funcionário da UE, à DW.

Segundo o texto, ao longo de vários anos, a UE e o Mercosul suspenderiam mais de 90% das tarifas que atualmente aplicam aos produtos um do outro.

Isso incluiria tarifas de 20% a 35% aplicadas pelo Mercosul sobre bebidas alcoólicas europeias, assim como a tarifa de 35% sobre carros europeus. A UE também prometeu às empresas do bloco “acesso preferencial exclusivo a matérias-primas essenciais e produtos ecológicos”.

Por outro lado, os países europeus também reduziriam as tarifas sobre os produtos de Mercosul. Por exemplo, adotariam uma tarifa reduzida de 7,5% para uma cota de importação de carne bovina. Haveria também um estímulo ao fluxo de investimentos entre os dois blocos, com uma maior integração de cadeias produtivas.

Por que os agricultores europeus estão preocupados?

Associações agrícolas europeias têm sido muito críticas ao acordo. O importante grupo de lobby Copa-Cogeca o considerou “economicamente e politicamente prejudicial para os agricultores, as comunidades rurais e os consumidores europeus”.

A principal preocupação dos agricultores europeus é que as importações possam criar concorrência desleal e reduzir a qualidade dos alimentos. Carne bovina, frango e açúcar estão entre os produtos mais controversos.

Para aliviar essas críticas, a Comissão Europeia propôs várias medidas que ajudariam a mitigar possíveis perturbações no mercado causadas pelo acordo de livre comércio.

Elas incluem uma abertura gradual do mercado da UE, limites de importação para certos produtos e um fundo de apoio de 6,3 bilhões de euros para os agricultores da UE.

A proposta para a próxima Política Agrícola Comum da UE, que dá subsídios a agricultores e tradicionalmente é um dos maiores itens orçamentários do bloco, também promete mais de 300 bilhões de euros em apoio à renda dos agricultores.

“Sabemos que há preocupações, especialmente por parte dos nossos agricultores, e quero garantir a todos que os ouvimos”, disse na quarta-feira o comissário da UE para o Comércio e a Segurança Econômica, Maros Sefcovic.

Mudanças sensibilizam países opositores

Essas medidas de proteção e salvaguardas atenuaram o ceticismo com o acordo que há em alguns dos países-membros da UE.

Há muito tempo, a França tem sido o opositor mais veemente. Mas, na quarta-feira, o ministro do Comércio francês, Laurent Saint-Martin, afirmou que as medidas anunciadas pela UE eram “um passo na direção certa”.

O governo da Itália, que também tem sido crítico, saudou “as salvaguardas adicionais para proteger os agricultores europeus” em um comunicado na quinta-feira.

A mudança gradual de posição deixou a Polônia como a última grande resistência, já que seu governo ainda se opõe abertamente ao acordo. O país é o maior produtor de frango da UE, que gerou 3,3 bilhões de euros apenas com as vendas para os países do bloco em 2024, segundo o instituto nacional de estatística.

O acordo com o Mercosul aumentaria a concorrência nesse mercado, e a Polônia teme uma queda dos preços e uma ameaça ao sustento de seus produtores.

“Não desistiremos quando se trata dos interesses dos produtores agrícolas poloneses”, disse o primeiro-ministro Donald Tusk à mídia polonesa na quarta-feira. Mas ele reconheceu que seu governo não será capaz de bloquear o acordo, que tem grande apoio, por exemplo, da Alemanha, cuja economia exportadora se beneficiaria.

A UE estaria desviando da supervisão dos países?

Após décadas de negociações, a Comissão Europeia busca agora uma conclusão rápida. “Gostaríamos de concluir o processo de aprovação do Mercosul até o final deste ano”, disse Sefcovic.

O Brasil exerce a presidência rotativa do Mercosul até o final do ano, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou diversas vezes que também gostaria de ratificar o acordo até lá.

Para acelerar a tramitação, a Comissão Europeia apresentou a parte comercial do texto como um acordo separado, enquanto outro acordo, mais abrangente, trata de áreas como meio ambiente, e cooperação política ou judicial.

Como a parte comercial é uma área de competência exclusiva da UE, as decisões podem ser tomadas a nível da UE, sem envolver os Parlamentos nacionais. Primeiro ele precisa ser aprovado pelo Conselho da União Europeia, que reúne os chefes de governo ou de Estado, onde precisa apenas do apoio de 15 dos 27 países, que representem pelo menos 65% da população do bloco.

Em seguida, ele será enviado ao Parlamento Europeu, onde precisa ser aprovado por maioria simples e deve gerar um debate acirrado.

Alguns críticos veem a divisão do acordo em duas partes como uma tentativa de contornar a supervisão dos países-membros. “Eles estão excluindo o escrutínio democrático e o debate público em nível nacional. Isso também alimenta a desconfiança nas instituições”, disse Audrey Changoe, especialista em política comercial e de investimentos da Climate Action Network (CAN) Europe, à DW.

Eurodeputados planejam medidas legais

Um acordo que trata apenas da parte comercial oferece proteção insuficiente ao meio ambiente, afirmou Saskia Bricmont, eurodeputada do Partido Verde, à DW. Ela ecoou alertas de grupos ambientalistas de que o texto poderia incentivar o desmatamento, especialmente na Amazônia, e prejudicar os povos indígenas.

“Isso parece ser incompatível com nossos tratados e compromissos da UE”, disse Bricmont.

Acompanhada de vários outros deputados do Parlamento Europeu, ela planeja solicitar ao Tribunal Europeu de Justiça um parecer jurídico sobre o assunto, na esperança de suspender o processo de ratificação do acordo.

Mensagem política de democracias

Apesar dessas preocupações, o especialista em comércio Garcia Bercero disse à DW que a ratificação enviaria uma forte mensagem política no atual contexto geopolítico global.

“Em um mundo em que se enfrenta uma ameaça tão grande às regras, é importante mostrar que democracias com ideais semelhantes estão prontas para cooperar”, afirmou. As políticas tarifárias voláteis dos EUA e os desafios no comércio com a China tornaram o acordo com o Mercosul ainda mais crucial, acrescentou.

Caso o acordo fracasse, ele teme que isso possa prejudicar a reputação da UE: “A mensagem para o resto do mundo seria que a UE não é um parceiro comercial confiável.”