25/02/2025 - 12:59
Região do Jequitinhonha concentra maior parte do mineral crítico para transição energética. Mas, no “Vale do Lítio”, moradores encaram inflação, deslocamento e danos à saúde.Há um ano, Nelson Santos foi obrigado a deixar a casa que arrendava na zona rural de Araçuaí, no norte de Minas Gerais. O artesão de 64 anos lamenta a mudança, que atribui à extração de lítio na região onde ficam as maiores reservas brasileiras do metal. O material se tornou símbolo para a transição energética mundial e é usado, entre outras aplicações, para fabricar baterias recarregáveis para carros elétricos.
Santos diz não ter visto a esperança de riqueza se converter em prosperidade para a população local. Em vez disso, a chegada de empresas brasileiras, estrangeiras e terceirizadas com centenas de funcionários acabou expulsando o artesão do lugar onde morava.
“Eu morava na comunidade São Marcos fazia sete anos quando chegou o pessoal do lítio; aí eles foram comprando as terras, tirando o pessoal das propriedades, algumas casas mesmo já iam cedendo com as explosões… até que o dono do terreno me pediu a casa para poder vender, e eu tive que sair”, conta, enquanto esculpe uma peça de madeira no corredor do pequeno imóvel onde mora atualmente com outras quatro famílias.
A região do Vale do Jequitinhonha é palco do paradoxo de ser conhecida por estar entre as áreas mais pobres do país – e, ao mesmo tempo, ser protagonista do boom da extração de lítio no Brasil.
Segundo o Ministério de Minas e Energia, o Brasil é o sétimo maior detentor de reservas de lítio no mundo. O MME ainda alardeia que o país é o quinto maior produtor mundial do minério.
A maior parte do lítio brasileiro fica no Vale do Jequitinhonha. As cidades de Itinga e Araçuaí concentram as maiores reservas e foram as primeiras do país onde se começou a extrair lítio em larga escala. Os municípios ficam numa região ecológica de transição entre Caatinga, Cerrado e Mata Atlântica.
A demanda global por lítio explodiu na última década, acompanhando a produção de mais carros elétricos, e deve continuar crescendo significativamente nos próximos anos. Um relatório do Banco Mundial publicado em 2020 projetou que a demanda global por baterias daquele ano até 2050 só poderia ser atendida se a produção de minerais como grafite, lítio e cobalto, entre outras, aumentasse 500% no período.
Ao mesmo tempo, o órgão defende que, “embora as tecnologias de energia limpa exijam mais minerais, a pegada de carbono de sua produção – da extração ao uso final – será responsável por apenas 6% das emissões de gases de efeito estufa geradas pelas tecnologias de combustíveis fósseis”.
Além disso, o Serviço Geológico do Brasil, subordinado ao MME, destacou num informe técnico publicado em 2023 que “encara o negócio do lítio como uma oportunidade de alavancar o desenvolvimento regional do país”.
Corrida pelo “ouro branco”
Em 2023, o governador mineiro Romeu Zema lançou o projeto “Lithium Valley” para atrair empresas para a região. O “Vale do Lítio” é formado por 14 cidades: Araçuaí, Capelinha, Coronel Murta, Itaobim, Itinga, Malacacheta, Medina, Minas Novas, Pedra Azul, Virgem da Lapa, Teófilo Otoni, Turmalina, Rubelita e Salinas.
Logo em seguida, também em 2023, a mineradora Sigma Lithium começou a operar em Araçuaí. A empresa tem escritório registrado no Canadá, a diretoria e a administração são formados, em larga maioria, por brasileiros. Além da Sigma, a Companhia Brasileira de Lítio (CBL) também explora o chamado “ouro branco” no município, e mineradoras como a americana Atlas Lithium, a canadense Lithium Ionic e outras estão prospectando o potencial do lítio para se estabelecer na região.
A promessa do lítio no Jequitinhonha atraiu dezenas de mineradoras aventureiras de primeira viagem, como explica um geólogo, funcionário de uma delas e que preferiu não se identificar para a reportagem da DW. “No ano em que a extração começou mesmo, isso aqui estava uma loucura; em todo canto, havia gente mostrando os resultados da prospecção e estrangeiros dispostos a investir”, lembra.
Mesmo que invistam apenas em pesquisa de potencial de extração, a empreitada pode significar um retorno de milhões de dólares. “A [mineradora americana] Latin Resources, [em fase de implantação] em Salinas, investiu no máximo US$ 50 milhões e acabou comprada pela australiana Pilbara Minerals por US$ 370 milhões; o sonho de todas que estão aqui é ser incorporada por gigantes”, garante o geólogo.
O fluxo balançou a economia de Araçuaí. Segundo o governo de Minas Gerais, um ano depois do lançamento, o projeto “Vale do Lítio” atraiu R$ 5,5 bilhões em negócios “para o ‘Vale da Esperança'”, “permitiu a geração de mais de 10 mil empregos diretos e indiretos” e contribuiu para a arrecadação de R$ 55,1 milhões de Compensação Financeira pela Exploração Mineral (Cfem) paga aos municípios afetados.
Porém, em vez de se refletir na renda da população local, vários moradores dizem ver a inflação tomar conta de produtos, serviços e terrenos da cidade. Um dos setores mais afetados foi o de moradia. Araçuaienses ouvidos pela reportagem da DW afirmam que casas pelas quais antes se pagava R$ 500 de aluguel hoje já custam até R$ 2.000 – uma alta de 400%.
Como efeito, alguns proprietários de casas no centro estão alugando as residências e se mudando para a periferia e cidades vizinhas. Ali, constroem novas moradias. A migração acaba tendo um efeito dominó, pois aumenta o preço do material de construção e dos terrenos, segundo apurou a reportagem da DW.
“Esse aquecimento da economia regional, dos serviços, é uma ilusão aparente”, defende Aline Weber, pesquisadora da UFVJM (Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e Mucuri) e do grupo Liquit, que estuda impactos da mineração de lítio na região. “Todo mundo está sendo expulso do centro de Araçuaí, para áreas mais periféricas, e essa desigualdade vai se acirrar, agravando ainda a violência urbana, a falta de água, a precarização dos serviços públicos”, prevê.
Autor do livro The Rare Metal Wars, o pesquisador francês Guillaume Pitron resume a situação vivida no Jequitinhonha e outras regiões do planeta. Para ele, é preciso encarar a transição energética com realismo.
“Essa visão precisa ser mais bem compreendida. Precisamos da transição energética, precisamos fazê-la acontecer… quero acreditar que uma era baseada em metais é melhor do que uma baseada em petróleo, mas a questão é como faremos essa transição”, observa. “Faremos isso a que custo para o meio ambiente, para as populações locais, para que homens e mulheres impactados e empregados nas minas e refinarias sejam tratados com dignidade?”, questiona.
Direitos socioambientais atropelados
Para o geógrafo Klemens Laschefski, da universidade de Heidelberg e membro do grupo Liquit, a tão necessária transição energética vem servindo de subterfúgio para atropelar direitos socioambientais.
“Chamo esse processo de novo colonialismo: temos a mensagem da salvação, que é desenvolvimento sustentável, transição energética e descarbonização, e usa-se essas palavras para justificar a invasão das terras indígenas, a invasão nas terras das populações tradicionais e quilombolas”, critica.
Um dos casos citados por Laschefski é o do Quilombo Baú: um território de 15 mil hectares a norte do centro de Araçuaí que iniciou o processo de reconhecimento em 2008, quando a Fundação Cultural Palmares certificou a região como remanescente de quilombo. Apenas em 2024 – 16 anos depois – as autoridades deram o primeiro passo para a regulamentação fundiária, com a publicação, pelo Incra, do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID).
Agora, a comunidade teme perder as terras para a mineração antes mesmo da sua titulação. Membros do Observatório dos Vales e Semiárido Mineiro, da UFJVM, disseram ter localizado 71 pedidos minerários – parte deles para a prospecção de lítio – na área reconhecida pelo Incra.
“Nós não queremos isso aqui cheio de buracos, virem aqui, apanhar a nossa riqueza e levar para outro país; as empresas só estão vendo um carro com bateria elétrica, menos poluição, riquezas para meia dúzia de pessoas, mas não está nem aí que meu filho morra sem ter um ar para respirar puro”, reclama o líder comunitário Antônio Cosme Neves, que já recebeu ameaças de morte após a divulgação do RTID.
Para o geólogo ouvido pela reportagem, empresas com responsabilidade socioambiental deveriam focar na mineração subterrânea, de menor impacto. Mas os investimentos neste tipo de extração são mais caros e demorados, o que acaba levando à preferência pela mineração a céu aberto.
Investigação
Uma portaria ministerial de 2015 determina que quilombos, terras indígenas e áreas tombadas pelo Estado tenham uma distância mínima de 8 km de empreendimentos de mineração. Segundo a legislação, cabe aos órgãos responsáveis garantir a proteção destes espaços durante o processo de licença ambiental.
Um inquérito do Ministério Público mineiro de outubro de 2023 aponta que a Sigma Lithium provocou “lesão a bens tombados pela Constituição Estadual, quais sejam, a Bacia Hidrográfica do Rio Jequitinhonha e de comunidades tradicionais”.
A infração teria ocorrido no complexo de mineração da Grota do Cirilo, de propriedade da Sigma Lithium. Em 2023, a empresa anunciou que as reservas minerais no complexo são 27% maiores do que as mapeadas inicialmente. Com isso, segundo dados da própria companhia, a Grota do Cirilo “se torna o quarto maior complexo mundial de mineração e beneficiamento industrial pré-químico de lítio em operação”.
Mas, segundo o inquérito do MPMG, o “Projeto Grota do Cirilo se encontra em área de influência” da Bacia Hidrográfica do Jequitinhonha.
Para boa parte dos moradores da comunidade de Poço Dantas, com casas a menos de 200 metros da pilha de rejeitos do complexo da Grota do Cirilo, a remoção seria a melhor opção diante dos transtornos causados pelas explosões diárias e pelo pó fino das rochas trituradas.
“A detonação, quando você tá aqui dentro, faz até medo; faz coisa que a casa sobe e depois desce, olha como é que já rachou toda… eu já não tenho medo de mais nada, só da casa cair em cima da gente”, diz a a agricultora Cleunice Gomes, de 55 anos, moradora da comunidade.
Ana Cabral, diretora executiva da Sigma, esteve em Araçuaí no mesmo período da reportagem, mas não concedeu entrevista na ocasião. Até o fechamento do texto, a empresa não havia se posicionado sobre os problemas relatados.
Área de Proteção Ambiental ameaçada
Do outro lado do município, a norte-americana Atlas está em vias de obter a licença de operação no entorno da APA (Área de Preservação Ambiental) Chapada do Lagoão, um planalto que abriga nascentes importantes para a região, incluindo o córrego Piauí. No começo de fevereiro, a Prefeitura de Caraí, município vizinho de Araçuaí, solicitou uma redução na APA em 5.500 hectares, ou 23% do território total. Segundo Caraí, a APA ultrapassa os limites de Araçuaí até Caraí de forma irregular.
“Estamos em uma região que é tratada como semiárida, e o acesso a nas comunidades rurais é um processo complexo; reduzir a APA para permitir a mineração é intensificar a destruição das águas na região semiárida”, contesta Weber, da UFJVM.
Atenta ao que ocorre com Poço de Dantas, a comunidade de Neves, aos pés da Chapada do Lagoão e onde a instalação de novas minas está mais avançada, já está preocupada.
A professora Ana Maria Batista destaca as reformas feitas nas estradas e na casa comunitária, mas teme pela saúde do sogro. Aos 98 anos, ele será vizinho da planta de beneficiamento, que deve ser instalada a cem metros da sua casa. “Nem ele nem minha sogra estão bem de saúde, ficamos muito preocupados com a poeira logo ao lado”, explica. No beneficiamento, o espodumênio contendo o lítio é triturado e moído para separar o concentrado de lítio da rocha bruta.
O vice-presidente de exploração mineral da americana Atlas Lithium, Areli Nogueira, disse estar afastado do projeto desde 2022, quando se mudou para Portugal. A DW não obteve resposta da empresa até o fim do prazo de fechamento da matéria.