04/05/2021 - 8:01
Quanto tempo os médicos devem esperar depois que uma “linha reta” (flatline) aparece antes de declarar a morte de uma pessoa? Como eles podem ter certeza de que os batimentos cardíacos e a circulação não retornarão?
A forma mais comum de morrer é depois que o coração para de bater. No entanto, há evidências limitadas de quanto tempo esperar para determinar a morte depois que o coração parar. Essa falta de informação tem repercussões na prática clínica e na doação de órgãos.
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Um princípio fundamental da doação de órgãos é a regra do doador morto: os doadores devem estar mortos antes da recuperação dos órgãos e a recuperação dos órgãos não deve ser a causa da morte. A falta de evidências sobre quanto tempo esperar antes de declarar a morte cria uma tensão: se os médicos esperarem muito depois que o coração para, a qualidade dos órgãos começa a diminuir.
Uma década de estudo
Por outro lado, não esperar o tempo suficiente apresenta o risco de prosseguir com a recuperação do órgão antes que a morte realmente ocorra.
Nossa equipe interdisciplinar de médicos, bioengenheiros e experientes pesquisadores clínicos passou a última década estudando o que acontece quando uma pessoa morre depois que seu coração para. Concentramo-nos nos pacientes internados em unidade de terapia intensiva que morreram após a suspensão do suporte vital, uma vez que esses pacientes também podem ser elegíveis para doação de órgãos.
Em particular, estávamos interessados em entender se é possível que o coração reinicie sozinho seu funcionamento, sem quaisquer intervenções como reanimação cardiorrespiratória ou medicação.
Olhar mais atento
Nosso estudo recente, publicado no “The New England Journal of Medicine”, apresenta observações do processo de morte de 631 pacientes no Canadá, na República Tcheca e na Holanda que morreram em uma unidade de terapia intensiva. Todas as famílias dos pacientes consentiram em participar da pesquisa.
Além de coletarmos informações médicas sobre cada paciente, construímos um programa de computador para capturar e revisar a frequência cardíaca, a pressão arterial, o nível de oxigenação do sangue e padrões respiratórios diretamente de monitores de cabeceira. Como resultado, conseguimos analisar os padrões de linha reta de fim de vida para 480 de 631 pacientes – incluindo verificar se e quando qualquer circulação ou atividade cardíaca retornou depois de parar por pelo menos um minuto.
O vídeo acima mostra que a pressão arterial e os sinais do eletrocardiograma param por 64 segundos antes de reiniciarem e, finalmente, param quase três minutos depois. O vídeo é acelerado oito vezes.
Paradas e recomeços
Acontece que a clássica linha reta da morte não é tão direta. Descobrimos que a atividade cardíaca humana frequentemente para e recomeça várias vezes durante o processo normal de morte.
De 480 sinais de “linha reta” analisados, encontramos um padrão de parar e iniciar em 67 (14%). O máximo que o coração parou antes de reiniciar por conta própria foi de quatro minutos e 20 segundos. O tempo mais longo que a atividade cardíaca continuou após o reinício foi de 27 minutos, mas a maioria das reinicializações durou apenas um a dois segundos. Nenhum dos pacientes que observamos sobreviveu ou recuperou a consciência.
Também descobrimos que era comum o coração continuar a mostrar atividade elétrica muito depois de o fluxo sanguíneo ou o pulso parar. O coração humano funciona como resultado de uma estimulação elétrica dos nervos que faz com que o músculo cardíaco se contraia e contribui para o fluxo sanguíneo – o pulso que você pode sentir nas artérias e veias.
Descobrimos que a frequência cardíaca (estimulação elétrica que leva ao movimento do músculo cardíaco) e o pulso (movimento do sangue nas veias) apenas pararam juntos em 19% dos pacientes. Em alguns casos, a atividade elétrica do coração continuou por mais de 30 minutos sem resultar em qualquer circulação de sangue.
Por que entender a morte é importante
Os resultados do nosso estudo são importantes por alguns motivos.
Em primeiro lugar, a observação de que a parada e o reinício da atividade cardíaca e da circulação costumam fazer parte do processo natural de morrer será reconfortante para médicos, enfermeiras e familiares que estão ao lado do leito. Sinais intermitentes em monitores de cabeceira podem às vezes ser alarmantes se os observadores os interpretarem como sinais de que a vida está voltando inesperadamente. Nosso estudo fornece evidências de que paradas e reinícios são esperados durante um processo normal de morte sem reanimação cardiorrespiratória e que eles não levam à recuperação da consciência ou à sobrevivência.
Em segundo lugar, nossa descoberta de que a pausa mais longa antes do reinício da atividade cardíaca por conta própria foi de quatro minutos e 20 segundos apoia a prática atual de esperar cinco minutos após a parada da circulação antes de declarar a morte e prosseguir com a recuperação dos órgãos. Isso ajuda a assegurar às organizações de doação de órgãos que as práticas de determinação da morte são seguras e apropriadas.
Nossos resultados serão usados para informar melhor as políticas e diretrizes para a prática de doação de órgãos internacionalmente. Para que os sistemas de doação funcionem, quando alguém é declarado morto, deve haver confiança de que a declaração é realmente verdadeira. A confiança permite que as famílias escolham a doação em um momento de luto e permite que a comunidade médica garanta cuidados de fim de vida seguros e consistentes.
Observação cuidadosa
Este estudo também é importante para melhorar nossa compreensão mais ampla da história natural da morte. Mostramos que descobrir quando um morto está realmente morto talvez não seja tão simples. Requer observação cuidadosa e monitoramento fisiológico rigoroso do paciente. Além disso, requer a compreensão de que, assim como na vida, existem muitos padrões que o processo de morrer pode assumir.
Nosso trabalho é um passo em direção à avaliação da complexidade da morte e sugere que devemos ir além da ideia de uma linha reta e direta para indicar quando a morte ocorreu.
Este artigo tem a coautoria de Laura Hornby, gerente de pesquisa e consultora do Children’s Hospital of Eastern Ontario Research Institute e do Canadian Blood Services, e de Nathan Scales, bioengenheiro e pesquisador associado do Laboratório de Análise Dinâmica do Ottawa Hospital Research Institute.
* Amanda van Beinum é doutoranda em sociologia na Universidade de Carleton (Canadá); Sonny Dhanani é professor associado da Faculdade de Medicina da Universidade de Ottawa (Canadá).
** Este artigo foi republicado do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original aqui.