01/03/2011 - 0:00
Se São Raimundo Nonato tivesse de ser rebatizada, teria de se chamar Niéde Guidon. Aos 77 anos, a paulista nascida em Jaú é a responsável praticamente por tudo o que acontece na cidade, situada a 525 quilômetros de Teresina, a capital do Piauí. São Raimundo é o portão de entrada de uma jornada arqueológica singular. Graças à enérgica guerreira de 1,56 metro de altura, nasceu o Parque Nacional Serra da Capivara, o maior conjunto de arte rupestre da América Latina e Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco.
O Parque Nacional Serra das Confusões (foto) é outra das únicas unidades de conservação do Brasil destinadas à preservação da caatinga. Grande parte de seus sítios arqueológicos, cavernas e grutas ainda é desconhecida pelos cientistas, assim como várias das espécies que ali vivem.
Há quase quatro décadas, a arqueóloga formada pela Universidade de Sorbonne, em Paris, desembarcou na cidade e começou a procurar na região vestígios da existência do homem pré-histórico na América. No Boqueirão da Pedra Furada, um dos mais bonitos sítios do parque, encontrou “restos” do que teria sido uma fogueira feita por um brasileiro da Idade da Pedra, datada na época em 48.500 anos.
Quando divulgou a descoberta em 1988, a pesquisadora abalou o meio científico. Afinal, se a sua hipótese fosse confirmada, comprovaria que o homem já habitava o continente americano muito antes do fim do Pleistoceno, a era geológica anterior a 10 mil anos, à qual se segue o atual período, o Holoceno, iniciado com o fim da última era glacial. As datações mais antigas da presença do homem na América do Sul, aceitas pelo consenso arqueológico, são de no máximo 12 mil anos.
Embora para calcular a idade dos vestígios da fogueira tenha sido empregado o carbono 14, método tido como seguro, alguns pesquisadores norte-americanos não aceitaram a teoria de Niéde. Para eles, as evidências arqueológicas descobertas em São Raimundo Nonato como artefatos humanos seriam, na realidade, geofatos, produtos da ação de forças naturais. Traduzindo: os vestígios seriam, na verdade, carvão produzido por queimadas naturais e não por fogueiras feitas pelo homem.
A polêmica ainda não terminou. Nos últimos anos Niéde venceu três rounds dela. O primeiro foi quando um dos mais ferrenhos críticos de seu trabalho, o professor Thomas Dillehay, da Universidade de Kentucky (EUA), após ser informado sobre vestígios ainda não comprovados de 33 mil anos no Chile, escreveu um artigo na revista Science admitindo que a datação de mais de 40 mil anos poderia ser verdadeira.
O segundo round aconteceu em 1993, com a publicação da tese de doutorado do arqueólogo italiano Fábio Parenti, que constata a veracidade da datação dos artefatos encontrados pela pesquisadora brasileira. Já o terceiro aconteceu em 2009, quando o carvão datado de 48.500 anos foi novamente submetido a testes, por meio da técnica da termoluminescência, estabelecendo-se a sua idade em 100 mil anos – outra revolução entre os cientistas.
Tesouro nacional
Enquanto os cientistas não chegam a um acordo quanto às evidências arqueológicas que mudam a história da chegada do homem ao continente americano, Niéde segue tomando conta dos tesouros do Parque Nacional Serra da Capivara: mais de 700 sítios arqueológicos com pinturas rupestres de até 12 mil anos.
Criado em 1979, o parque hoje é uma das poucas unidades de conservação do Brasil destinada à preservação da caatinga, palavra indígena que significa floresta branca. O outro único parque que também preserva a caatinga é o vizinho Parque Nacional Serra das Confusões, que tem 502 mil hectares. Esse importante bioma abriga uma rica biodiversidade e corre o risco de extinção. Só por isso, o local já merece ser conhecido.
A Serra da Capivara tem 214 quilômetros de perímetro repleto de vegetação, flora e fauna típicas. Mas caminhar pelas trilhas do seu interior é como passear em um museu arqueológico a céu aberto. São milhares de pinturas rupestres que retratam cenas da vida cotidiana dos homens que habitaram a região na pré-história.
Há cenas de caça, de animais da extinta megafauna, de rituais, de sexo e de dança. Conhecer as imensas rochas desenhadas é como ir ao encontro de nossos ancestrais e assistir a uma aula de história, ao vivo e em cores, sobre como viviam, onde moravam, o que faziam, como enterravam os mortos e como eram a fauna e a flora da região naquela época.
Parte do material recolhido faz parte do acervo da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), idealizado por Niéde e mantido com verbas do governo francês, do japonês e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), entre outras instituições.
Desafetos e travessuras
Em São Raimundo Nonato há outras iniciativas que promovem o desenvolvimento econômico da região, gerando empregos para parte da população de 35 mil pessoas. Mas a conservação do parque, administrado por um convênio entre o poder público e a Fumdham, da qual Niéde é a presidente, já foi muito combatida por coronéis do sertão. Em 1973, quando a arqueóloga chegou à região, eram comuns as brigas com caçadores de animais silvestres na Serra ou com gente que retirava cal dos sítios pré-históricos.
Atualmente, para entrar no parque o visitante tem de passar por uma das quatro guaritas que dão acesso ao santuário arqueológico – duas em São Raimundo Nonato e outras duas no vizinho município de Coronel José Dias. Os turistas somente podem conhecer o local se estiverem acompanhados por um guia. O número de visitantes é limitado. Para os grandes eventos, como o Festival de Cultura Acordais, realizado no anfiteatro da Pedra Furada, em novembro, o ingresso é limitado a mil pessoas.
Em todas as guaritas trabalham apenas mulheres da região, outra das travessuras de Niéde. Cansada de ver banheiros sujos e de ouvir a mão de obra masculina alegar que limpeza era tarefa de mulher, ela não teve dúvida: demitiu os homens. Afinal, se manter o lugar limpo era coisa de mulher, nada mais justo que elas fossem contratadas. Não foi a primeira vez – e certamente não será a última – que a arqueóloga bateu de frente com os costumes do sertão.
Quer ver ela virar fera? Atreva-se a colocar em risco o Parque Nacional Serra da Capivara e os sítios arqueológicos, onde vivem diferentes espécies (muitas delas endêmicas) de répteis, aves e mamíferos, além de uma infinidade de plantas. Se tiver alguma dúvida quanto ao desfecho dessa história, converse com algum ex-caçador regenerado.
Mesmo quando a pesquisadora manda prender os caçadores ou ameaça de morte quem invade as terras para danificar o patrimônio do parque, São Raimundo Nonato sai ganhando. Afinal, depois de tantos anos (leia-se desavenças e desafetos), hoje a maioria da população está conscientizada sobre a importância da preservação do parque e sobre o seu tesouro histórico e ecológico.
A fauna é tema de inspiração para as peças de cerâmica produzidas na cidade. Perto da reserva, no povoado de Barreirinho, funciona a Cerâmica Serra da Capivara (www.ceramicacapivara.com), resultado de um projeto social desenvolvido pela Fumdham em 1992. A associação aperfeiçoou as técnicas dos artesãos locais e criou a cerâmica com motivos inspirados nos desenhos pré-históricos existentes nas rochas do parque.
As pinturas surgem nos vasos, nas xícaras, canecas, moringas e dezenas de outros objetos produzidos artesanalmente. A oficina emprega os moradores do entorno do parque e as peças são exportadas para outros Estados e para o Exterior “A Itália é um dos maiores consumidores de nossas peças”, orgulha-se Girleide Maria Alves de Oliveira, administradora da indústria.
A arqueóloga agora já tem uma nova ideia: quer exportar os exóticos cactos que brotam abundantemente na caatinga, gerando mais empregos e desenvolvimento econômico para a cidade. Mas já há quem seja contra. Não chega a ser novidade para “a mulher de Guidon” ou “mulher do ‘Ibamba'”, como a chamavam quando chegou na região. Apelidos e desamores à parte, Niéde Guidon já nem se importa. Ousada, segue redesenhando a história de São Raimundo Nonato e – se a sua teoria arqueológica for comprovada – a do planeta.
SERVIÇO
Como chegar – Via Teresina (PI), ou por Petrolina (PE): Gol Linhas Aéreas Inteligentes.
Site: www.voegol.com.br.
De Teresina – Siga na direção sul pela Rodovia BR-316 até a cidade de Regeneração. De lá, pegue a PI-236 até Oeiras e siga pela PI-143 em direção a Simplício Mendes. Por último, prossiga pela Rodovia BR-020 até São Raimundo Nonato. O trajeto a ser percorrido é em torno de 550 quilômetros.
De Petrolina – Siga em direção à cidade pernambucana de Afrânio. Entre à esquerda, passando pelas cidades piauienses de Queimada Nova, Lagoa do Barro e São João do Piauí. Até chegar a São Raimundo Nonato são cerca de 400 quilômetros.
Onde ficar – Hotel Serra da Capivara – Localizado em um bosque a um quilômetro do centro de São Raimundo Nonato, tem estacionamento, internet e piscina. Seus 44 apartamentos são equipados com tevê 20 polegadas, frigobar e arcondicionado. Fica na Rodovia Piauí 140, Km 0, bairro de Santa Luzia, tel. (89) 3582-1389.
E-mail: hotelserradacapivara@firme.com.br.
Hotel Real – Fica bem no centro de São Raimundo Nonato. Seu restaurante – o Real Sabor – oferece refeições no sistema de self-service. Largo Manoel Agostinho de Castro, 704, centro, tels. (89) 3582-1495/1691. E-mail: real.hotel@yahoo.com.br,
site: www.realhotelsrn.com.br.
Com excelente infraestrutura, o parque abriga galerias de vários andares decoradas com pinturas rupestres. Nele, até hoje já foram catalogados 976 sítios, 654 deles com pinturas rupestres. Abaixo, a Serra das Confusões.
Camping Pedra Furada – Opção econômica ideal para estudantes, mochileiros e para quem gosta de estar em contato mais direto com a natureza. No lugar também são oferecidas refeições caseiras. O camping fica no povoado Sítio do Mocó, s/ nº, zona rural, no município de Coronel José Dias, a 25 quilômetros de São Raimundo Nonato. Tel. (89) 3582-2845. E-mail: luceliaabs@hotmail.com.
Guias – As diferentes trilhas e roteiros da Serra da Capivara só podem ser desvendadas ao lado de um guia credenciado pela Fumdham. Para contratar o serviço de um deles, basta se informar na recepção dos hotéis da cidade sobre o telefone dos profissionais da Associação dos Condutores de Visitantes da Serra da Capivara (Acovesc). Seus filiados agendam visitas diariamente das 6 horas às 18 horas. Cada guia pode conduzir um grupo de no máximo dez pessoas. A taxa pelo passeio é de R$ 75. É importante lembrar que não existem locadoras de veículos em São Raimundo Nonato. Se desejar alugar um táxi na cidade, o passeio no parque, sem a taxa do guia e de entrada na reserva (R$ 10), não fica por menos de R$ 130.
Imperdível – Não deixe de ir ao Museu do Homem Americano e ao Centro Cultural Sérgio Motta. No local, você pode conferir o resultado de quase 40 anos de pesquisas realizadas no Parque Nacional Serra da Capivara. Logo em sua entrada, um gigantesco telão exibe um filme que discorre sobre as origens da espécie humana, a sua dispersão e o povoamento do continente americano. Assim como o filme, todo acervo do museu é autoexplicativo: painéis, utensílios, ferramentas, artefatos, fósseis e outras peças datadas de diferentes períodos históricos descrevem a origem e a evolução dos povos primitivos que ali viveram. Fica no Centro Cultural Sérgio Motta s/nº, Campestre, tel. (89) 3582-1612. De terça-feira a domingo, das 9h às 17h. Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (estudantes).
Imperdível também é o Baixão das Andorinhas, um dos roteiros do parque. Diariamente, por volta das 17 horas, o cânion com 90 metros de profundidade recebe bandos de andorinhões que se abrigam em suas fendas. Além desse inesquecível espetáculo, a paisagem que se testemunha lá de cima, a imensidão do cânion sendo tingido pelos raios multicoloridos do pôr do sol, é simplesmente indescritível.
Para saber mais – Centro de Informações Turísticas da Prefeitura de São Raimundo Nonato – Funciona de segunda a sexta-feira, de modo precário e sem horário definido. Largo Capitão Tomaizinho, centro. O único telefone disponível é o da prefeitura: (89) 3582-1054. Fumdham – www.fumdham.org.br
Festa do padroeiro – Todos os anos os devotos de São Raimundo Nonato têm um encontro marcado: durante o período de 22 a 31 de agosto comemoram a data dedicada ao santo, que é o padroeiro da cidade. Logo no dia 22, sempre às 19 horas, os fiéis rumam à Igreja Matriz, uma construção de 1876. Diante do altar, fazem novenas, ladainhas e também preces silenciosas ao padroeiro. É a abertura da festa religiosa.
Depois, a Avenida dos Estudantes é palco de uma comemoração profana: dezenas de barraquinhas de comidas típicas e bebidas se espalham ao longo de toda a sua extensão. Ali há diversão garantida para todas as idades, desde a pescaria e outras brincadeiras comuns em quermesses até o carrossel e a roda-gigante especialmente montados para a festividade. Toda ela regada a muita música. Afinal, numa tradicional festa nordestina não podem faltar o forró, a música baiana e – mais recentemente – o pagode!
No último dia da festa, às 17 horas, a imagem de São Raimundo Nonato é levada pelos devotos. Em romaria, percorre as principais ruas da cidade. Em seguida, a procissão retorna à matriz e a imagem é devolvida ao altar. Até o mês de agosto do próximo ano, será dali que o santo ouvirá os pedidos de seus fiéis, gente humilde que tem na fé a sua única arma para lutar contra as condições adversas do clima da caatinga.