17/07/2024 - 7:04
Ao vencer a Copa de 94, Brasil rompeu jejum de 24 anos sem títulos mundiais. Morte de Senna e chegada do Real marcaram meses que antecederam o Mundial.A seleção brasileira chegará aos Estados Unidos, em 2026, com a pressão de ter de quebrar um jejum de 24 anos sem vencer uma Copa do Mundo. O cenário da próxima Copa — que dessa vez terá alguns jogos no México e no Canadá — é o mesmo de 1994, quando a Seleção conseguiu ganhar o sonhado tetra na terra do soccer.
Há 30 anos, a conquista que tirou o futebol brasileiro da fila de 24 anos sem títulos mundiais marcou uma geração. O pênalti do craque italiano Roberto Baggio subindo pelos céus da Califórnia, seguido dos gritos de “é tetra” que ecoavam nas tevês e nas ruas, entrou para sempre na memória do país.
“Não há seleção brasileira mais atacada e criticada do que a de 1994”, afirma o jornalista Thiago Uberreich, que no mês passado lançou o livro 1994, o Brasil é tetra. Para o livro, o autor entrevistou 15 dos 22 jogadores campeões, além do técnico Carlos Alberto Parreira.
Atualmente treinada por Dorival Júnior, a Seleção ainda precisa garantir a vaga para a Copa de 2026, mas o Brasil jamais ficou de fora da maior competição de futebol do mundo. Recentemente, também nos EUA, a Seleção foi eliminada da Copa América nas quartas de final, após perder nos pênaltis para o Uruguai.
“O período que a Seleção enfrenta hoje é um período muito complicado, talvez o pior de todos os tempos”, opina Uberreich, que também é autor de Biografia das Copas e de três livros sobre os títulos do Brasil nas Copas de 1958, 1962 e 1970.
Nas eliminatórias para a Copa de 1994, a Seleção perdeu sua primeira partida na história da competição, em La Paz, contra a Bolívia, causando uma enorme crise no futebol brasileiro. No ano passado, três derrotas seguidas na mesma competição, fato inédito, sendo uma delas o primeiro revés em casa na história, não causaram a mesma repercussão.
“Há uma crise de identidade. Várias vezes a gente ouve os amigos falando que, quando estão vendo um jogo da seleção, na hora do hino nacional eles não reconhecem os jogadores”, diz o autor.
Curto período de grandes mudanças
Naqueles meados de 1994, o Brasil viveu um período de acontecimentos marcantes em um curto espaço de tempo. Em 19 de abril, a morte precoce do craque Denner, num acidente automobilístico, seguido pela também chocante e inesperada morte de Ayrton Senna, 12 dias depois, impactaram o país.
“Na mesma semana da morte de Senna, o Brasil fez um amistoso e Zinho comemorou um gol fingindo que estava dirigindo um carro”, lembra Thiago Uberreich. A partida terminou com a vitória da Seleção por 3 a 0 contra a Islândia, três dias após a tragédia em Ímola, com o país de luto.
Em 1° de julho, entrou em vigor o Real, a nova moeda do país, pondo fim ao flagelo da hiperinflação que, entre idas e vindas, assolava a economia desde a ditadura militar. Durante a transmissão da estreia da Seleção na Copa, contra a Rússia, em 20 de junho, o narrador Galvão Bueno divulgou um 0800 para tirar dúvidas sobre a chegada do Real.
Após a final, em 17 de julho, com o tetra garantido, foi a vez do narrador Luciano do Valle destacar a importância da vitória esportiva e dizer que o país agora esperava uma virada política e econômica. “Houve uma mistura muito grande da economia e da política com o futebol naquela época”, observa o autor.
“Fernando Henrique Cardoso, que era o candidato do presidente Itamar Franco, disse num discurso que o Plano Real foi tão competente quanto a seleção brasileira e que o governo dele também seria tão competente quanto”, completa Uberreich.
Ministro da Fazenda responsável pela implantação do Plano Real, Fernando Henrique Cardoso já havia deixado o ministério quando a moeda entrou em circulação, para poder concorrer à presidência na eleição de outubro, vencida por ele.
Faz, Bebeto!
Classificada como líder do grupo, a Seleção foi encarar os donos da casa nas oitavas de final, no dia 4 de julho, data da independência dos Estados Unidos.
No forte calor de Stanford, o Brasil ficou com um a menos depois que o lateral-esquerdo Leonardo se desvencilhou do meia Tab Ramos, que o segurava, com uma cotovelada que o nocauteou. Apesar de imediatamente arrependido, Leonardo foi expulso, enquanto Tab Ramos foi levado ao hospital. No mesmo dia, recebeu uma visita e um pedido de desculpas do brasileiro.
A expulsão dificultou a vida da Seleção, que viu a eliminação rondando até que entrasse em ação o seu grande diferencial: a dupla Bebeto e Romário. Quando o passe do baixinho chegou aos pés do camisa 7, os narradores Galvão Bueno, Luciano do Valle e Luiz Alfredo — que faziam a transmissão por Globo, Bandeirantes e SBT — disseram a mesma coisa, numa súplica sincronizada: “Faz, Bebeto!”.
“Esperava que você desse uma pancada forte, eu já saí preparado”, disse o goleiro Tony Meola a Bebeto, que contou a história em entrevista ao Charla Podcast, em 2023.
Em vez de encher o pé, Bebeto deu um toque precioso na bola, fazendo-a rolar lânguida para caprichosamente tocar e derrubar uma garrafinha de água que estava encostada na bochecha da rede, subindo até tocar sua costura, no ângulo, tirando um peso dos ombros do time e garantindo a vaga para as quartas de final.
Após o jogo, um flagra do atacante Müller gesticulando com o técnico Parreira gerou a especulação de que o titular das Copas de 1986 e 1990 estivesse cobrando uma vaga no time, mas na verdade ele estava botando panos quentes nos xingamentos que o lateral-esquerdo Branco fez ao treinador.
“Quando eu vi aquela cena, eu cheguei: ‘professor, deixa o Branco pra lá, ele tá viajando na maionese, ele tá chateado, vamo pra próxima'”, disse Müller no Deu Zebra Cast, em 2022.
Branco se irritou porque Parreira preferiu improvisar Cafu na lateral esquerda após a expulsão de Leonardo, em vez de colocar ele em campo, que era o reserva imediato, mas voltava de contusão. “Depois eles tiveram uma reunião e Branco pediu desculpas”, conta Uberreich.
Contagem regressiva para o tetra
Branco foi decisivo contra a Holanda, marcando o gol que classificou o Brasil para a semifinal com sua “bomba santa” numa cobrança de falta. O jogo ficou marcado pela famosa comemoração do gol de Bebeto, que homenageou o nascimento de seu filho Mattheus como se embalasse um bebê, com a companhia de Romário e Mazinho na coreografia.
Sem o mesmo destaque, a comemoração já havia sido feita no segundo jogo, contra Camarões, em homenagem ao filho de Leonardo.
Coordenador técnico da Seleção, o supersticioso Zagallo começou uma contagem regressiva de jogos antes do início da competição. “Faltam sete, nós vamos chegar lá”, dizia. Após a vitória sobre a Holanda, o Velho Lobo estava mais agitado do que o de costume. “Só faltam duas! Queiram ou não, vamos chegar lá”, disse à época Zagallo, que ainda levou a bola do jogo para casa como um troféu.
“A vitória contra a Holanda foi uma vitória pessoal dele por causa da derrota em 1974”, explica Uberreich, lembrando da eliminação do Brasil para a Holanda quando Zagallo era o treinador.
Na semifinal, o Brasil venceu a Suécia — com quem havia empatado na fase de grupos — graças a um gol de cabeça de Romário, eleito o melhor jogador da Copa. A Seleção voltava a uma final que não alcançava há cinco Copas, ou 24 anos. O adversário, a Itália, também tentava o tetra.
“A Itália estava quebrada. A própria seleção brasileira estava estafada também”, diz o autor. A final no Rose Bowl, em Pasadena, começou às 12h30 locais, uma característica daquela Copa que, para atender interesses de transmissão, realizou jogos em horários de intenso calor.
Em campo, o Brasil foi melhor e teve chances de ganhar a partida, mas a Itália conseguiu levar a decisão para os pênaltis.
“Eu quis chutar rasteiro, praticamente à sua direita, mas não sei por que ela subiu tanto. Talvez tenha sido Senna que pôs a mão. Para superar essa decepção e essa amargura eu digo sempre que foi a mão de Senna no caminho”, falou Roberto Baggio na série Romário, o cara, lançada este ano, respondendo a uma pergunta em italiano do goleiro Taffarel, que na época da Copa jogava no Reggiana, da Itália.
Na comemoração em campo, os jogadores ergueram uma faixa e uma bandeira em homenagem a Senna. Dunga ergueu a taça e eternizou-se como capitão do tetra, posto que passou a ocupar durante a Copa, depois que o camisa 10, Raí, capitão habitual do time, perdeu a titularidade.
“Raí chegou à Copa mal fisicamente, cansado. Ele falou para mim: ‘eu tava há três anos sem férias, cheguei na Copa do Mundo numa descendência'”, explica o autor.
A euforia pelo título, estampada na imagem de Galvão Bueno, Arnaldo Cezar Coelho e Pelé abraçados e gritando “é tetra”, estendeu-se pelo Brasil. O presidente Itamar Franco decretou ponto facultativo no dia seguinte, embora muitos torcedores já tivessem decretado feriado nacional por conta própria.
“Essa conquista foi uma injeção de ânimo na economia e no cidadão. É claro que o futebol não resolve as mazelas brasileiras, mas aquilo mexe com as pessoas. A Copa do Mundo é uma catarse coletiva, mexe com o sentimento e a autoestima de um país”, encerra Thiago Uberreich.