10/04/2024 - 14:02
Os Emirados já são um hub global de mercenários, e há indícios de que querem criar a sua versão da Legião Estrangeira Francesa. Mundo registra proximidade crescente entre exércitos públicos e forças privadas.O anúncio de emprego atraiu a atenção de muito mais pessoas do que o pretendido, provavelmente porque soava como o início de um filme de ação.
Procura-se um “operador de Legião Estrangeira”, dizia o texto. O candidato deve ter menos de 50 anos, ser altamente disciplinado, estar em boa forma física, ter pelo menos cinco anos de experiência militar e ser capaz de lidar com “condições de alto estresse”. O salário começaria em cerca de 2 mil dólares por mês, mas aumentaria se a pessoa fosse enviada para fora dos Emirados Árabes Unidos, como ao Iêmen ou à Somália.
O anúncio foi descoberto pela primeira vez por uma publicação francesa, o site Intelligence Online, que disse que ele havia circulado por ex-soldados das forças especiais francesas. Uma investigação mais aprofundada rastreou o anúncio até uma consultoria de segurança, a Manar Military Company, ou MMC, sediada em Abu Dhabi. A empresa é dirigida por um ex-oficial das forças especiais francesas e está financeiramente ligada a uma família rica e politicamente influente de Abu Dhabi.
Tudo no anúncio indicava que os Emirados Árabes Unidos queriam criar sua própria legião estrangeira de elite, com 3 mil a 4 mil recrutas, até meados do próximo ano.
Os meios de comunicação que entraram em contato com a MMC não conseguiram obter uma resposta precisa. Representantes da empresa disseram que o anúncio não era real, que o projeto havia sido cancelado e que tudo não passou de um exercício de desinformação. A MMC não respondeu às perguntas da DW.
Mas, segundo especialistas afirmaram à DW, há uma boa chance de que esse projeto – uma legião estrangeira dos Emirados Árabes Unidos – seja real.
A Intelligence Online tem boas conexões com o setor militar francês e é provável que esse vazamento seja uma maneira de dizer que a França não está satisfeita com esse cenário, disse Andreas Krieg, professor sênior da Escola de Estudos de Segurança do King's College, em Londres. Os franceses se preocupariam com o fato de que membros de suas forças de segurança pudessem ser atraídos para empregos nos Emirados, observou.
“Parece ser algo que os Emirados Árabes Unidos fariam, dado seu histórico”, concordou Sean McFate, professor da Escola de Serviço Exterior da Universidade de Georgetown e autor do livro The New Rules of War. “Os Emirados Árabes Unidos têm uma tradição de terceirização do poder militar e têm feito isso de vez em quando desde 2011.”
“Certamente, quando se ouve 'mercenários' hoje em dia, eu em geral penso muito mais nos Emirados Árabes Unidos do que na Rússia”, acrescentou Krieg. “Os Emirados se tornaram uma espécie de centro de atividades mercenárias no Sul Global.”
Por que os Emirados usam mercenários?
Os sete emirados que compõem os Emirados Árabes Unidos têm uma população de cerca de 9 milhões de pessoas, mas apenas um milhão são emiratis. Portanto, embora o Exército dos Emirados Árabes Unidos tenha cerca de 65 mil funcionários, entre um terço e 40% são estrangeiros.
Ao mesmo tempo, a liderança dos Emirados tem sido agressiva em relação ao que considera seus interesses estratégicos em lugares como o Iêmen e a costa da Somália. Os mercenários são empregados devido ao que Krieg chama de “aversão a baixas”.
“Os mercenários são atraentes para sociedades muito ricas que querem se envolver em guerras, mas não derramar o seu próprio sangue”, explicou McFate.
Outro aspecto de trazer estrangeiros para as forças armadas dos Emirados é a “proteção contra golpes”. Afinal de contas, por que mercenários bem pagos derrubariam um governo autoritário em um país no qual não têm nenhum interesse?
E há também a ideia de “negação plausível” que os mercenários oferecem a seus chefes se as operações militares em que estiverem envolvidos forem clandestinas.
Desde 2003, o uso do que é conhecido como “empresas privadas de segurança militar”, ou PMSCs na sigla em inglês, cresceu rapidamente, afirmou o Stockholm International Peace Research Institute em seu relatório de 2023. “Hoje, as PMSCs operam em quase todos os países do mundo, para uma ampla variedade de clientes”, disse o instituto.
Para os Emirados Árabes Unidos, tudo começou em 2009, quando Erik Prince, ex-membro da elite da Marinha dos EUA e fundador da PMSC Blackwater, veio para montar uma brigada de 800 membros dentro dos Emirados.
Prince acabou se desentendendo com seus contratantes, mas a cooperação lucrativa entre ex-oficiais experientes dos EUA e os Emirados continua. Em 2019, a agência de notícias Reuters descobriu que os Emirados estavam pagando para criar unidades de guerra cibernética. Em 2022, o jornal Washington Post relatou como os Emirados seguiam pagando ex-militares dos EUA em troca de assessoria e instrução.
Há também exemplos mais graves. Uma investigação da BBC descobriu que os Emirados contrataram mercenários, incluindo americanos e israelenses, para realizar assassinatos com motivação política no Iêmen, ou treinaram moradores locais para fazer isso. Os Emirados também são conhecidos por serem um centro de logística e financiamento para o famoso grupo de mercenários da Rússia, o Grupo Wagner.
Uma verdadeira legião
Caso isso se torne realidade, uma legião estrangeira dos Emirados Árabes Unidos, como descrito na oferta de emprego, ela seria bastante diferente dos casos citados acima.
“Quando você contrata mercenários, isso traz muitas dores de cabeça”, diz McFate, que também trabalhou como empreiteiro militar privado. “A maioria delas tem a ver com segurança, responsabilidade e traição – o que não é nenhuma surpresa. Mercenários são como fogo: eles podem incendiar sua casa ou acionar uma máquina a vapor”, argumenta. “Portanto, uma solução para isso é ter uma legião estrangeira.”
Os soldados de uma legião estrangeira tendem a ter contratos mais longos, geralmente são parte oficial de um exército nacional e também estão sujeitos a regras e regulamentos locais.
Uma legião estrangeira é “uma espécie de ruptura com o passado [para os Emirados Árabes Unidos] porque parece ser mais institucionalizada, menos ad hoc do que algumas das outras atividades em que eles estiveram envolvidos”, disse Krieg à DW. “Isso lhes dá a possibilidade de recrutar pessoas de uma forma semilegítima.”
“Isso pode até ser uma espécie de virada de jogo”, continuou ele. “Porque sempre que alguém acusar os Emirados por suas atividades mercenárias, onde estão cometendo possíveis crimes de guerra ou talvez facilitando-os, agora que eles estão usando um modelo estabelecido como o da Legião Estrangeira Francesa, eles podem desviar e dizer 'os franceses estão fazendo isso, por que nós não podemos'?
McFate acredita que, à medida que o mundo se torna mais multipolar e a política externa se torna ainda mais transacional, haverá ainda mais “mercantilização do conflito”. Os Emirados Árabes Unidos, com uma liderança autoritária, muita riqueza e poucas restrições legislativas, estão em posição de explorar isso, disse.
Krieg concorda. “A mercantilização das guerras está se desenvolvendo nos últimos 20 anos. Estamos vendo mais sinergias entre entidades públicas e privadas trabalhando juntas na guerra, de modo que não se pode mais dizer que é apenas um assunto de Estado ou apenas um assunto privado. É uma mistura de ambos”, explicou. “E os Emirados são mestres nisso, e vêm explorando essa zona cinzenta há anos.”