20/02/2025 - 13:15
Ao promover a criptomeda $LIBRA, o presidente lesou 44 mil investidores e gerou uma crise política sem precedentes na Argentina. Agora tenta provar que agiu “de boa-fé”.O lançamento da fracassada criptomoeda $LIBRA na Argentina provocou uma crise política sem precedentes no país, com investigações judiciais em andamento e um intenso debate público sobre a responsabilidade do presidente Javier Milei e de outros atores envolvidos no que tem sido tratado pela imprensa argentina como um caso de fraude financeira.
Na tarde de 14 de fevereiro, Milei promoveu – ou, segundo ele, divulgou – em sua conta nas redes sociais a criptomoeda $LIBRA: “Este projeto privado se dedicará a incentivar o crescimento da economia argentina.”
Lançada no mesmo dia, o preço da criptomoeda saiu do zero e atingiu quase 5 dólares (R$ 28) poucas horas após a publicação de Milei. Os nove sócios responsáveis pelo projeto, que detinham 80% das moedas, aproveitaram a supervalorização para liquidar todos os seus ativos, levando consigo os lucros.
Com a venda em massa, a cotação da $LIBRA despencou 90% em duas horas, drenando a carteira de pelo menos 44 mil investidores ao redor do mundo. Estima-se que no mínimo 250 milhões de dólares foram perdidos nas transações, que movimentaram, desde seu lançamento, mais de 4 bilhões de dólares.
Milei apagou sua publicação inicial e afirmou que “não estava ciente dos detalhes do projeto”, mas o prejuízo instaurado derrubou a credibilidade do país. Em meio à polêmica, a bolsa argentina (MERVAL) despencou 5,58% na segunda-feira, e diversos investidores acusam o presidente de promover um golpe financeiro.
A suspeita é que o presidente argentino teria incentivado a compra da moeda, sabendo que sua publicação inflaria o valor, e o colapso traria lucros substanciais aos donos do projeto.
Mais de 100 denúncias contra Milei e outros envolvidos foram apresentadas à Justiça, a maioria por fraude, conflito de interesses e tráfico de influência. Eles também foram denunciados nos EUA ao Departamento de Justiça, ao FBI e à Comissão de Valores Mobiliários. Na segunda-feira, Milei afirmou que havia agido “de boa fé” e se recusou a assumir a responsabilidade perante as vítimas.
Congressistas da oposição também iniciaram um processo de impeachment pelo que chamam de “criptogate”. Analistas consideram improvável que a oposição consiga o número de votos necessários para tirar Milei do cargo.
Outros defendem a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), uma iniciativa mais viável. Há ainda uma terceira proposta da esquerda para interpelar o presidente. Isso exporia o populista de direita a perguntas do Congresso, o qual ele já definiu como um “ninho de ratos”.
O advogado Adolfo Suárez Erdaire, especialista em fraudes digitais que investiga o caso, disse à agência de notícias AFP que, mesmo se um processo de impeachment o considerasse culpado, “a única penalidade no âmbito político seria a destituição e a inabilitação para ocupar cargos públicos novamente”.
No entanto, após o fim do mandato, Milei poderia enfrentar na justiça comum acusações com penas de até seis anos de prisão, além de processos civis para reparação dos prejudicados: “Ele corre um risco legal latente, porque os processos judiciais sempre permanecem”, explicou Erdaire.
O que pesa contra Milei
Além de Javier Milei, estão envolvidos no caso o americano Hayden Mark Davis, um dos criadores da $LIBRA; o singapurense Julian Peh, fundador do site Vivalalibertadproject.com, pelo qual a moeda foi lançada; e o argentino Mauricio Novelli, fundador de um fórum tecnológico onde os três se reuniram com o presidente em outubro, em Buenos Aires.
Milei terá problemas com a Justiça se for provado que tem conexão com os envolvidos e se beneficiou de um possível esquema.
“O mais importante é determinar, com base numa investigação, se o presidente agiu em conluio com os que criaram esse projeto, e se houve um acordo segundo o qual Milei decidiu publicar essa postagem”, explica Carlos Manuel Garrido, ex-chefe do Escritório Anticorrupção da Argentina e atual diretor da ONG Innocence Project.
“Ao promover um negócio privado, próprio ou de terceiros, Milei estaria violando a Lei de Ética Pública sobre as responsabilidades dos funcionários do Estado, mas tudo depende do resultado das investigações.”
O próprio Milei informou no X que teve um “encontro muito interessante” com Davis em 30 de janeiro, na Casa Rosada: “Ele me aconselhou sobre o impacto e as aplicações da tecnologia blockchain e inteligência artificial no país”.
Indícios sérios de corrupção na Casa Rosada
Reportagens publicadas por veículos argentinos já apontam para indícios ainda mais sérios de que os donos da criptomoeda possuem relações próximas com a presidência argentina.
O jornal argentino La Nación divulgou mensagens enviadas por Davis a um empresário, na tentativa de promover a criptomoeda. Ele diz ter “controle total” sobre Milei e alega que paga propinas à secretária-geral da Presidência, Karina Milei, irmã do presidente. “Eu mando $$ para a irmã dele e ele assina o que eu digo e faz o que eu quero”, escreve Davis, que também afirmou ser capaz de mandar o presidente argentino tuitar sobre a moeda e promovê-la a qualquer momento.
Segundo fontes ouvidas pelo La Nación, Davis estaria coordenando a reação à crise com a Casa Rosada. Ele chegou a indicar que sabia da entrevista a ser gravada pelo presidente. Já registros oficiais de entrada e saída de prédios do governo mostram que Novelli e Davis visitaram Karina Milei pelo menos 12 vezes desde janeiro de 2024, antes do encontro pessoal com o presidente.
Segundo o diretor do Centro Argentino de Política Econômica (Cepa), Hernán Letcher, “no momento, duas possibilidades estão sendo debatidas na Argentina”: “Uma é que se tratou de uma fraude premeditada e que Milei tentou enriquecer a si e ao seu círculo próximo. A outra é a teoria da ingenuidade, de que Milei caiu na armadilha da fraude. Mas é difícil imaginar que o presidente, um economista que se apresenta com muita experiência, não teria investigado essas pessoas para ver quem eram e como operavam.”
Quem é quem no escândalo argentino e o que dizem
O empresário americano Mark Davis, que se descreve como “conselheiro” de Milei em projetos de tokenização – algo que o governo agora nega –, é o rosto visível da Kelsier Ventures, dedicada a investir em criptomoedas.
Davis conheceu Milei em outubro de 2024 e teve uma reunião com ele na Casa Rosada em 30 de janeiro. De acordo com o próprio presidente, foi o americano quem levou o projeto $LIBRA até ele durante uma das reuniões.
O empresário declarou que o lançamento da $LIBRA foi um “experimento” que deu errado, negou ter orquestrado um golpe e questionou Milei e sua equipe por terem excluído as publicações “sem aviso prévio”.
Ele afirmou estar de posse de pelo menos parte do dinheiro investido na moeda e se ofereceu para reinvestir cerca de 100 milhões de dólares (R$ 570 milhões), o que pode recuperar o valor dos ativos para alguns investidores. Apesar da oferta, esse valor não foi aplicado.
Já Julian Peh é um empresário de tecnologia de Cingapura e diretor executivo da KIP Protocol. Embora o governo tenha inicialmente atribuído o desenvolvimento do projeto à empresa, esta nega e defende que sua participação foi planejada num estágio posterior ao lançamento da moeda digital e sob instruções da Kelsier Ventures, que seria a entidade responsável pela iniciativa.
Milei também se reuniu com Peh em outubro, durante o Tech Forum Argentina, em Buenos Aires. De acordo com a KIP Protocol, nesse encontro de 30 minutos não houve menção ao “projeto Viva la Libertad ou ao lançamento de qualquer token”, concentrando-se em questões de inteligência artificial, tecnologia e a possibilidade de investir no país.
O fundador do Tech Forum, é o argentino Mauricio Novelli. Ele foi o elo entre Milei, que conhece há anos, Peh e Davis. É também cofundador da N&W Professional Traders, empresa que oferece cursos de formação financeira, onde Milei deu aulas antes de entrar para a política. Em suas próprias palavras, conhece Novelli “há anos”.
Na noite de segunda-feira, o canal TN exibiu uma entrevista com Milei gravada naquela tarde. “Por querer ajudar os argentinos, levei um tapa na cara”, disse , alegando que quem investe em criptoativos “sabia muito bem qual era o risco que estava assumindo”, e comparando a situação a quem “vai a um cassino”.
Um trecho cortado da entrevista, porém, viralizou nas redes sociais e gerou ainda mais polêmica, pois o presidente e o jornalista comentam ironicamente que as perguntas estavam preparadas de antemão. Pouco depois, a pedido da equipe de Milei, o jornalista alterou uma pergunta após admitir que poderia causar um “problema judicial”.
Não é a primeira criptomoeda
Esta é a segunda vez em três anos que a Milei promove uma criptomoeda. Em 2022 foi a vez da CoinX, e depois o videogame NFT Vulcan. “Milei se reuniu várias vezes com os criadores da $LIBRA e com um em particular, Mariano Novelli. Portanto, a teoria da ingenuidade – que é à que o presidente vai recorrer, porque senão vai acabar na cadeia – é difícil de sustentar”, questiona Hernán Letcher, do Cepa.
“Em primeiro lugar, deveria ser investigado se houve fraude. E, além disso, se o presidente Milei estava ciente da fraude”, resume Carlos Garrido. Javier Milei já anunciou que criará uma comissão para investigar os criadores da moeda e que solicitara ao Escritório Anticorrupção que o investigasse. “O problema é que o Escritório Anticorrupção é chefiado por um funcionário que é amigo do Ministro da Justiça”, ressalva Garrido.
gq/av (EFE,AFP,ots)