Especialistas veem motivação eleitoral no projeto da oposição, que privilegia penas mais duras em detrimento do asfixiamento econômico do crime organizado. Governo quer recuperar texto original no Senado.A Câmara dos Deputados aprovou na terça-feira (18/11) o texto-base do Projeto de Lei Antifacção. Inicialmente encaminhado pelo Planalto, o projeto foi modificado pelos parlamentares da oposição, a contragosto da base governista. A aprovação é vista como derrota para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e vitória do presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB), interessado em emplacar a resposta legislativa mais dura até hoje ao crime organizado.

Pontapé do PL foi a megaoperação que deixou 121 mortos no Rio de Janeiro, a mais letal da história recente do Brasil. O tema da segurança pública — apontado entre as maiores preocupações dos brasileiros — viu seu espaço inchar na política nacional desde então, inclusive dentre os cotados para concorrer a novos cargos em 2026.

Com 370 votos favoráveis e 110 contrários, foi acatada a sexta versão apresentada em pouco mais de uma semana pelo relator, o deputado Guilherme Derrite (PP-SP). Mais severa que a proposta do governo, o projeto de lei tipifica novos crimes, endurece penas para integrantes de organizações criminosas, grupos paramilitares e milícias e permite a apreensão de bens de investigados, entre outras mudanças.

A base governista reclama da desconfiguração do projeto original e da falta de enfoque no asfixiamento econômico do crime organizado. Já especialistas ouvidos pela DW interpretam o endurecimento penal do PL como pouco eficaz contra as facções, gestadas dentro de presídios a partir dos anos 1980.

“Do ponto de vista da busca por soluções efetivas, não me parece que fará uma grande diferença,” afirma Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF). “Nós já estamos no jogo eleitoral, e o que foi aprovado mais envia sinais à percepção da população sobre a segurança do que estabelece práticas de impacto maior.”

Punições mais duras

Chamado de “marco legal do combate ao crime organizado”, o PL Antifacção qualifica várias condutas características de grupos armados — o que pode incluir o tráfico de drogas, milícias privadas e outros — como crime hediondo de “domínio social estruturado”. Hoje, estas práticas estão pulverizadas no Código Penal.

Dentre elas, estão usar violência ou grave ameaça contra a população ou agentes públicos para controlar territórios, impedir o trabalho de forças de segurança — incluindo a obstrução à circulação, por exemplo com barricadas —, impor atividades econômicas ou serviços públicos sobre uma determinada área ou atacar serviços públicos essenciais.

A pena varia de 20 a 40 anos de reclusão, ou 12 a 20 anos para quem favorecer o crime. Quando houver agravante, como o exercício de liderança em organizações criminosas, a pena será aumentada em dois terços e cumprida em presídios federais de segurança máxima.

Uma pessoa não pode ficar mais de 40 anos presa no Brasil, mas condenações maiores que este limite influenciam na progressão de regime. O PL estabelece que o condenado poderá ter que cumprir até 85% da pena para haver progressão de regime, dificultada ainda neste caso pelo fato de se tratar de crime hediondo.

Corte de benefícios

O condenado pela execução ou favorecimento de domínio social estruturado fica, pelo texto-base do PL, proibido de ser beneficiado por anistia, graça, indulto, fiança e liberdade condicional.

Além disso, seus dependentes não poderão receber auxílio-reclusão, o benefício de até um salário-mínimo pago às famílias de segurados do INSS com baixa renda em regime fechado. Os bens apreendidos preventivamente durante as investigações poderão ainda ser perdidos antes do trânsito em julgado, quando não há mais possibilidade de recurso.

Numa rede social, Motta celebrou a aprovação, ressaltando a criação de bancos de dados a níveis estaduais e nacional. “Vamos em frente com responsabilidade e a urgência que o tema requer.”

Já nas palavras de Derrite, que deixou o cargo de secretário de Segurança Pública de São Paulo para atuar na tramitação do PL Antifacção, “o enfrentamento do crime organizado no Brasil exige legislação de guerra em tempo de paz”.

Quem praticar os crimes listados no projeto mesmo sem integrar a estrutura do crime organizado estará sujeito a penas de 12 a 30 anos. Pessoas jurídicas usadas para fins criminosos neste contexto poderão também ser alvo de intervenção.

Críticas da oposição

Para membros do governo, a versão atual do PL pode beneficiar os membros de organizações criminosas. “Há uma série de normas conflitantes que vão abrir uma oportunidade para que os investigados comecem a questionar qual é a norma efetivamente aplicada”, afirmou, na véspera da votação, o secretário nacional de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Marivaldo Pereira, à Agência Brasil.

Outro dos pontos de alta sensibilidade na Câmara são as atribuições da Polícia Federal (PF). Parlamentares governistas reclamam que o projeto aprovado descapitaliza a corporação ao dividir os recursos apreendidos do crime organizado.

Os valores obtidos por meio de investigações de polícias estaduais serão destinados aos próprios estados, conforme o PL, enquanto para o Fundo Nacional de Segurança Pública, que beneficia a PF, vão os frutos das investigações da própria corporação. Os fundos seriam divididos em operações conjuntas entre as duas partes.

Durante o vaivém na Câmara, a PF expressou “preocupação” com um parecer do relator que condicionava estas investigações conjuntas a pedidos formais dos governadores. Uma versão subsequente previa a atuação da corporação “através de comunicação às autoridades estaduais competentes”.

Sob críticas de Motta, do governo e de especialistas, o ex-secretário de São Paulo acabou voltando atrás, negando a intenção de reduzir as competências da PF.

Mecanismos de cooperação

Mas o texto não detalha mecanismos de cooperação técnica entre diversos órgãos, enquanto a base governista quer ver integração entre PF, Receita Federal, Banco Central e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).

“Uma investigação bem-feita, com o rastreamento do caminho do dinheiro, precisa disso”, argumenta o advogado criminalista Antonio Gonçalves. “Falta delinear o procedimento, o que é extremamente importante para uma legislação ter efeito.”

Também ficou de fora a equiparação entre crime organizado e terrorismo, em meio a preocupações de que isso poderia favorecer eventual interferência externa de outro país e afastar investimentos estrangeiros.

Os próximos passos são a análise dos destaques pelos deputados — ou seja, trechos do texto-base ou emendas em aberto para aprovação ou reprovação — e a votação dos senadores. A base governista pretende recuperar o texto original no Senado.