Câmara dos Deputados quer mudar atendimento a crianças e adolescentes grávidas e vítimas de estupro. Para críticos, proposta favorece pedófilos.Na noite de quarta-feira (05/11), a Câmara dos Deputados aprovou, por 317 votos a 111, projeto que, na prática, visa tornar ainda mais difícil o acesso de menores de 14 anos vítimas de violência sexual e grávidas a serviços de aborto permitidos por lei.

O texto derruba resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), de dezembro de 2024, que detalhou e regulamentou diretrizes para atendimento de crianças e adolescentes em casos de aborto legal. Nela estão definições como a prioridade absoluta a essas meninas no acesso ao serviço de interrupção legal da gestação, o sigilo e o atendimento seguro e humanizado de saúde.

O Código Penal brasileiro definiu o aborto como crime, punível com prisão, em 1940 – mas desde então também autoriza o procedimento em caso de gravidez resultante de estupro ou de risco de vida para a mulher. Em 2012, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), foi definida uma terceira situação para o aborto legal: quando o feto é anencéfalo.

No entanto, o acesso a esse direito tem sido cada vez mais dificultado no Brasil. Pela lei, qualquer relação sexual com menor de 14 anos configura estupro, e são elas as maiores vítimas de violência sexual. Em 2023, quase 14 mil meninas nessa faixa etária tiveram filhos no país, mas apenas 154 tiveram acesso ao aborto legal.

O texto aprovado por três quartos dos deputados federais, de partidos de direita e do chamado centrão, chama o direito ao aborto previsto por lei de “deturpação ideológica” e afirma que o Conanda “cria tipos penais e extrapola seu poder de regulamentar”.

O texto precisa ainda ser apreciado pelo Senado. Se aprovado, entraria em vigor sem a necessidade de sanção presidencial.

Entenda o que está em jogo com o avanço deste projeto de decreto legislativo, apelidado por críticos de “PDL da pedofilia”.

O que diz a resolução do Conanda?

A resolução que corre o risco de ser suspensa dispõe sobre o “atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual e a garantia de seus direitos”, como explica o primeiro artigo do texto.

Entre os tópicos abordados, estão:

Diretrizes para o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, com prioridade absoluta e atuação integrada dos órgãos públicos;
Direito à informação sobre direitos sexuais e reprodutivos, inclusive sobre o aborto legal, de forma adequada à idade;
Dispensa de boletim de ocorrência, autorização judicial ou consentimento dos responsáveis;
Direito ao sigilo absoluto, escuta especializada e atendimento que evite constrangimentos ou exposição da vítima.

O Conanda justifica que, apesar de a legislação brasileira já prever o direito à interrupção da gestação em situações de estupro, as estatísticas alarmantes, ilustradas por casos recentes que vieram a público de crianças impedidas de realizar o procedimento, mostraram a urgência de uma regulamentação do tema.

Em 2020, por exemplo, um hospital no Espírito Santo negou o atendimento de uma menina grávida de dez anos, que precisou ser transferida para um hospital em Recife (PE), onde o procedimento foi realizado, quando ela já estava com aproximadamente 22 semanas de gestação.

O caso teve grande repercussão: vazamento da identidade da menina, e divulgação do endereço do hospital nas redes sociais por ativistas contrários ao aborto, o que gerou hostilização ao hospital e à vítima. A família da menina entrou em programa de proteção, com mudança de nome e endereço.

O que diz quem defende o projeto?

A mobilização contra a regulamentação do acesso ao aborto a menores de 14 anos foi encabeçada por grupos religiosos, especialmente católicos e evangélicos, em mais um capítulo de uma ofensiva conservadora que vem ganhando terreno no Congresso.

No projeto aprovado pela Câmara, de autoria da deputada Chris Tonietto (PL-RJ) e com relatoria do deputado Luiz Gastão (PSD-CE), um dos argumentos apresentados é a falta de limite temporal da gestação para o aborto, o que, na prática, “autorizaria a realização de aborto em casos nos quais a gestação está próxima de 40 semanas”, disse Gastão, que é também coordenador da Frente Parlamentar Católica.

Em suas redes sociais, ele comemorou a derrubada da resolução do Conanda como uma “grande vitória da VIDA!”, agradecendo às frentes católica e evangélica na Câmara pelo resultado.

“Nós mostramos no plenário hoje que a bancada cristã que está surgindo surge forte e com valores”, afirma, em vídeo. Ele diz ainda que o projeto acaba “restituindo os valores da vida e defendendo a vida desde a sua concepção”.

Outro ponto criticado é o de que a regulamentação dispensa qualquer tipo de autorização dos pais ou dos responsáveis pela criança.

“Criança não é mãe”

A deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) ponderou, durante a tramitação do texto, que em “uma grande maioria dos casos” o estuprador é o pai biológico ou adotivo ou outro familiar próximo, e que por isso nem sempre o representante legal terá de autorizar o procedimento.

O governo articulou resistência ao projeto. Com o avanço da medida, o Ministério das Mulheres emitiu nota condenando a decisão e reforçando que a resolução do Conanda visa proteger os jovens e garantir a aplicação de direitos já existentes em lei.

“A gestação forçada é a maior causa de evasão escolar feminina e leva à morte de uma menina por semana no Brasil. A resolução do Conanda, construída com a participação da sociedade civil, não ultrapassa suas funções e nem cria novos direitos, ela apenas detalha como aplicar a lei para salvar vidas”, diz a nota.

Representantes da sociedade civil também demonstraram repúdio ao projeto. A ONG Nem Presa Nem Morta, por exemplo, destacou, em suas redes sociais, que os deputados votaram por sustar o direito ao aborto de crianças no mesmo dia em que ampliaram a proteção a animais, ao aprovar o aumento da punição pra quem trafica e maltrata animais silvestres.

“Forçar uma criança ou adolescente estuprada a seguir grávida e parir não só é tortura como coloca a vida delas em risco – pois têm 5x mais chances de morrer durante a gestação, o parto ou o puerpério”, afirma a entidade.

A deputada Fernanda Melchionna (Psol-RS) lembrou que as leis da escuta protegida e do minuto seguinte já dispensam o boletim de ocorrência para realização de aborto em caso de estupro e, portanto, a resolução do Conanda não inova.

Tampouco há novidade sobre não haver um limite de tempo de gestação, já que a lei também não traz uma regra nesse sentido.

“É um absurdo obrigar vítimas de violência sexual a carregar essa violência se quiserem acessar o aborto legal, sem boletim de ocorrência, sem revitimização, com garantia da escuta protegida, com garantia do fluxo. Aí eles inviabilizam o fluxo, obrigando a menina de 10, 11, 12 anos, ampliando os tempos da gestação para obrigá-la a ser mãe”, criticou.

O que é o Conanda?

O Conanda é um colegiado subordinado ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, formado por 14 integrantes da sociedade civil e outros 14 do governo. Ele é o órgão máximo em políticas de proteção e promoção dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil, responsável também por fiscalizar e regulamentar políticas públicas conforme o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA).

Na época da aprovação da resolução, em dezembro passado, deputados como Nikolas Ferreira (PL-MG), Julia Zanatta (PL-SC) e Gustavo Gayer (PL-GO) iniciaram uma campanha para derrubar as diretrizes.

A Casa Civil também atuou para derrubar a medida na ocasião, e todos os representantes do governo no conselho votaram contra – em contraste com a recente mobilização do governo para defender as diretrizes do Conanda. O entrave era a falta de consenso entre integrantes da sociedade civil.

Como o STF vê o tema

A questão do aborto legal ilustra bem o atual descompasso entre os três Poderes sobre temas que tratam de direitos humanos.

Em 2023, o STF iniciou a análise de uma ação apresentada em 2017 pelo Psol que pede a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez até a 12ª semana de gestação – não apenas para os três casos atualmente previstos por lei, mas para qualquer pessoa que assim decidir.

A então presidente da Corte, Rosa Weber, agora aposentada, proferiu o primeiro voto, a favor da descriminalização. Logo na sequência, Luís Roberto Barroso pediu para levar o caso a plenário, paralisando a tramitação.

Em seu último dia antes de se apostentar, em 17 de outubro, Barroso apresentou seu voto a favor da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. “Se homens engravidassem, não seria crime”, concluiu.

O julgamento foi novamente suspenso, a pedido do ministro Gilmar Mendes.