27/12/2025 - 15:43
Agências governamentais de saúde e associações médicas travam embate público em torno da vacinação. No centro da polêmica está o mito já desmentido em torno de uma suposta associação entre vacinas e autismo.Em meio a um conflito público cada vez maior entre as agências de saúde do governo dos Estados Unidos sob a Presidência de Donald Trump e entidades médicas profissionais e independentes, especialistas dizem que os médicos de família são provavelmente a melhor fonte para obter informações confiáveis e de primeira mão sobre vacinas e outros medicamentos.
A Associação Médica Americana (AMA), a Academia Americana de Pediatria e outras 42 entidades assinaram uma declaração conjunta protestando contra uma nova recomendação do Comitê Consultivo sobre Práticas de Imunização (Acip, na sigla em inglês) dos EUA, um painel consultivo governamental de alto nível sobre segurança e eficácia de vacinas.
O Acip votou para que a vacina contra hepatite B, normalmente administrada a todos os recém-nascidos nos EUA nas primeiras horas de vida, seja opcional para todos, exceto no caso de bebês com maior risco de infecção. A hepatite B é uma infecção viral prevenível por vacina que causa distúrbios hepáticos, incluindo cirrose e câncer, frequentemente fatais.
Em setembro, o Acip também recomendou que a vacina MMRV – que une a vacina tríplice contra sarampo, caxumba, rubéola e a vacina contra varicela (causadora da catapora) – fosse administrada separadamente.
As mudanças vêm ocorrendo apesar da falta de evidências de que as vacinas possam causar danos e de dados acumulados ao longo de vários anos que aprimoram os esquemas de dosagem das vacinas.
“A maior preocupação para nós, que acompanhamos essas recomendações, é como isso pode semear desconfiança em relação às nossas vacinas, ao calendário de vacinação e aos dados que possuímos”, afirmou Jodie Guest, especialista em doenças infecciosas da Escola de Saúde Pública Rollins da Universidade Emory, à DW. “É confuso, é complicado.”
A reformulação das estruturas de saúde
Normalmente, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), a agência federal de saúde pública dos Estados Unidos, implementam as recomendações do Acip como diretrizes para os estados americanos, que têm a responsabilidade final pela política de saúde dentro de seus territórios.
As diretrizes do CDC geralmente são apoiadas por importantes entidades médicas e seguidas pelas seguradoras de saúde para definir a cobertura dos planos. Contudo, o Acip e o CDC foram reformulados em 2025 pelo Secretário de Saúde dos EUA e notório ativista antivacina, Robert F. Kennedy Jr .
Este “novo grupo de pessoas [é] bastante cético, senão francamente hostil às vacinas”, disse Josh Sharfstein, especialista em saúde pública da Universidade Johns Hopkins.
Ex-secretário de Saúde do estado de Maryland, nomeado por um governador democrata, Sharfstein disse à DW que os principais processos de tomada de decisão do Acip foram abandonados sob o novo painel indicado por Kennedy.
“As tomadas de decisão sobre vacinas perderam a integridade”, disse Sharfstein. Ele diz que os cientistas não fazem mais apresentações aos consultores. Ao contrário, quem os informa são representantes legais que já enfrentaram todo tipo de questionamento sobre a precisão de suas declarações no passado.
“É mais do que apenas uma conclusão diferente, é um processo completamente diferente”, disse Sharfstein. “É um processo que saiu dos trilhos.”
“Hostilidade generalizada em relação às vacinas”
Por trás disso tudo está uma visão há muito defendida por Kennedy de que algumas vacinas causariam autismo. Recentemente, ele ordenou uma atualização da página de informações de segurança “Autismo e Vacinas” no portal do CDC, que passou a afirmar que pesquisas importantes sobre uma suposta ligação entre autismo e vacinas foram “ignoradas pelas autoridades de saúde” e que “a afirmação ‘vacinas não causam autismo’ não é uma alegação baseada em evidências”.
No entanto, vários estudos que analisaram milhões de nascimentos não encontraram nenhuma ligação entre vacinas — geralmente a vacina tríplice MMR — e autismo. Isso foi reafirmado em dezembro de 2025 por um comitê de especialistas da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Profissionais médicos disseram que as alegações de aumento nas taxas de autismo nos EUA se deve à ampliação das definições da condição e à melhoria dos métodos de diagnóstico, não à vacinação. Muitas páginas no site do CDC ainda afirmam que as vacinas, incluindo a vacina MMR, são seguras.
“Isso não significa que não haja aspectos importantes a serem estudados em relação à segurança das vacinas”, disse Sharfstein. “O objetivo deve ser sempre tornar as vacinas mais seguras e compreender melhor os riscos. É possível acreditar que os benefícios superam em muito os riscos das vacinas e ainda assim querer torná-las o mais seguras possível.
“O que está acontecendo agora, acredito, não é motivado por um tipo específico de estudo. Penso que está relacionado a uma hostilidade muito generalizada em relação às vacinas.”
Médicos de família como “retaguarda”
À medida que Kennedy reformulou estruturas federais de saúde importantes, houve renúncias de funcionários científicos de longa data em suas agências de saúde.
Entidades médicas independentes, academias e especialistas estão preocupados com o fato de as informações das agências federais de saúde não serem mais confiáveis e começaram a divulgar seus próprios aconselhamentos ao público.
James Campbell, vice-presidente do comitê de doenças infecciosas da Academia Americana de Pediatria, chamou as reuniões do Acip de “uma tentativa descarada de semear medo e desconfiança em vacinas que salvaram inúmeras vidas”.
Após as recomendações, cerca de uma dúzia de estados americanos – todos liderados por democratas – disseram que rejeitariam quaisquer mudanças no calendário de vacinação. As seguradoras de saúde afirmaram que continuariam a oferecer cobertura para a vacinação contra hepatite B ao nascer, apesar da nova diretriz do Acip.
Uma nova pesquisa encomendada pelo Annenberg Public Policy Center também descobriu que os adultos americanos, por uma margem de 2 para 1, estariam mais propensos a seguir o conselho da Associação Médica Americana do que o do CDC.
Jason Schwartz, pesquisador de vacinas e políticas de vacinação da Universidade de Yale, nos EUA, disse à DW que a reação da comunidade médica americana é “uma tentativa de mitigar o que a grande maioria da comunidade médica e de saúde pública considera mudanças inadequadas nas recomendações federais sobre vacinas”.
No entanto, ele e outros especialistas com quem a DW conversou afirmam que o conflito de mensagens entre o governo federal, estados e principais entidades médicas pode gerar confusão.
“Acredito que a posição das associações profissionais, dos médicos e dos enfermeiros tem agora muito mais credibilidade com o povo americano”, disse Sharfstein.
Schwartz apontou o relacionamento com os médicos de família como a “retaguarda” em meio ao conflito entre as principais entidades médicas e o Departamento de Saúde de Kennedy.
“Esse relacionamento com um profissional de saúde que a família conhece, com quem pode conversar, que pode ouvir suas perguntas e preocupações, pode ajudar a esclarecer confusões ou incertezas que, sem dúvida, eles estão sentindo em algum grau neste momento”, disse Schwartz.
Possível impacto global
O papel tradicional dos EUA como líder global em saúde também está em declínio.
Muitos países basearam suas próprias agências de saúde pública, comitês consultivos de vacinas e estruturas de revisão científica nos modelos americanos.
Alguns também consideram órgãos como a Food and Drug Administration (FDA), responsável pela aprovação de medicamentos nos EUA, como uma referência valiosa para suas próprias agências nacionais.
“Não sei se outros países deveriam seguir a liderança dos Estados Unidos nessas decisões, e isso é lamentável”, disse o especialista em doenças infecciosas Guest.
A mudança de procedimento em todas as agências federais de saúde dos EUA e o aumento da linguagem confusa em relação a pesquisas científicas consolidadas sobre a segurança das vacinas também podem impactar a percepção pública sobre imunização e medicamentos em outros países.
“Acho que isso realmente pode moldar o futuro dos esforços de vacinação em termos globais”, disse Schwartz.
Sharfstein apontou os cortes promovidos pelo governo do presidente Donald Trump na ajuda humanitária global, que incluíam o fornecimento de vacinas e o financiamento a muitos países de baixa e média renda, como ações adicionais que “minam um papel muito positivo que o governo dos EUA desempenhou no passado”.
Em sua opinião, a hesitação em relação às vacinas e a queda na adesão à vacinação infantil provavelmente farão com que os EUA percam seu status de país “livre de sarampo” em meio a um surto prolongado da doença. Em 2025, houve 1.935 casos de sarampo, em comparação com os 285 registrados em todo o ano de 2024 e os 59 de 2023.