22/05/2017 - 15:00
Vivemos em plena era do excesso. Vamos pelo mundo como ilhas ambulantes, a flutuar num oceano coalhado de produtos industrializados de todos os tipos, de medicamentos farmacêuticos, de poluição ambiental, de guarda-roupas cheios de peças inúteis, de constantes propagandas que nos conduzem à produtividade e ao consumismo insustentáveis. Sem falar no excesso de informação feita sob medida para poluir e intoxicar nossas mentes e nossos corações. Já parou para pensar na quantidade de coisas veiculadas pelos jornais, revistas, pela televisão e pelos milhões de sites na internet que, sem dó nem piedade, bombardeiam todos os dias nossas frágeis estruturas cerebrais?
Tudo que é demais faz mal. Intoxica. E intoxicação, como verbete de dicionário, corresponde a uma “série de efeitos sintomáticos produzidos quando uma substância tóxica é ingerida ou entra em contato com a pele, olhos ou membranas mucosas”. Da mesma forma, tudo aquilo que entra pelas portas dos sentidos – visão, olfato, paladar, tato, audição – pode ser de natureza deletéria e nos intoxicar. O modelo de civilização que inventamos é tóxico e chegou agora a um estado de paroxismo no qual a regra geral é a perda da consciência da medida das coisas.
Como costumo lembrar, para os antigos gregos o descomedimento – entendido exatamente como perda do senso de medida – era a maior de todas as falhas. Eles chamavam essa perda da consciência de limites de húbris, e consideravam que ela não tinha remissão. Quem cometia essa falha estava condenado ao inferno por toda a eternidade. Os deuses viam a húbris como a pior das formas de arrogância e puniam com severidade máxima todos que se deixavam seduzir pelo descomedimento.
Mas hoje perdemos essa noção fundamental da sabedoria grega, e manifestamos nossa perda da consciência de limites o tempo todo. Estaríamos todos, assim, condenados à danação eterna pelos deuses gregos. Não acredita? É fácil perceber, por exemplo, até que ponto fomos tomados pela compulsão de fazer tudo melhor, em maior quantidade e no menor tempo possível. Da manhã à noite ouvimos injunções vindas de fora – mas também de dentro – repetindo que é preciso fazer isso, ou aquilo, agir assim ou assado. Pouco a pouco, essas injunções tornam-se vozes interiores, autoritárias, que logo deixam de ser vozes e se transformam em gritos de ordem: produzir, comprar, consumir!
Cruzar os braços?
O filósofo francês Fabrice Midal é o líder do movimento “Soltar as rédeas”, que a cada dia reúne mais adeptos no seu país. Midal, que ensina meditação há mais de 20 anos, é um especialista no assunto – o próprio título que deu a seu movimento sugere isso. Ele afirma: “Quando ordeno a mim mesmo que tenho de responder a todos os meus e-mails hoje, sem falta, mesmo àqueles que não são urgentes, eu me coloco sob pressão e começo a me sentir culpado se deixar passar apenas um minuto sem fazer alguma coisa. O tempo todo é preciso fazer melhor, mais rápido, incrementar o desempenho. Mas o único resultado disso é nos trazer mais frustração. É preciso, portanto, que mandemos todas essas injunções para o inferno, obrigando-as a nos deixar em paz”.
Mas seria então o caso de cruzar os braços, de realmente mandar tudo para o inferno, de não fazer mais nada? Parece que não. Soltar as rédeas significa eliminar a pressão, mas não significa que temos de deixar de agir. Como fazer isso? Simplesmente mudando o ângulo de visão, a perspectiva. Por exemplo: você tem um projeto e deverá apresentá-lo a um potencial patrocinador. Você estudou, pesquisou, caprichou na elaboração do projeto. Mesmo assim, chega ao escritório do patrocinador como quem se aproxima do patíbulo.
Na sua cabeça, as preocupações dão pinotes como cavalos bravios. E se eu não conseguir me explicar? E se a ideia não agradar? E se tudo der errado? Você chega lá estressado, e sua angústia tem origem num único ponto: a impossibilidade de poder controlar tudo. Na melhor das hipóteses, você manda todas as preocupações para o inferno, decide enfrentar com coragem o desafio e exclama: “O que tiver de ser será”. É nessa postura que reside sua maior chance de ter sucesso na empreitada: quando deixamos correr solta a lógica da vida, descobrimos que ela oferece naturalmente as forças que conduzem ao progresso e à cura.
Midal e outros estudiosos estão convencidos de que tal postura, aparentemente paradoxal, é suficiente. Ele diz que “essa postura basta para suspender o desejo de perfeição, de sucesso, que nos estrangula”. Perguntado se a compreensão profunda do significado de “o que tiver de ser será” é decorrência da prática bem feita da meditação, Midal comenta: “Claro, muitos hoje vêm às práticas de meditação com a ideia de que têm um desafio a enfrentar, uma tarefa a ser executada, a obrigação de alcançar o objetivo: a serenidade. São esses pressupostos que, quase sempre, levam à frustração: a sensação, principalmente no começo das práticas, de não conseguir chegar aos resultados preconcebidos em nossa mente a respeito do que deve ser a meditação. A pessoa chega com a ideia de que terá de encarnar uma sabedoria”.
Presença plena
O mecanismo explicado por Midal é exatamente o mesmo que aplicamos a qualquer outra circunstância da vida: temos um desejo, que transformamos em um plano, e logo o projetamos a partir de uma perspectiva utópica, idealizada. Como raramente o resultado dos nossos esforços corresponde aos resultados idealizados, acabamos muitas vezes frustrados e sequer conseguimos desfrutar dos aspectos positivos de nossas realizações.
Dessa forma, voltando ao caso da meditação, como a sabedoria utópica parece não chegar, o que sobrevém é um sentimento de culpa por não se ter alcançado o sucesso esperado. Isso deriva em boa parte do fato de que, em geral, o sentido do termo “meditação” é mal compreendido. Na mindfulness meditation (meditação da consciência plena), por exemplo, esse termo induziu uma intelectualização da prática meditativa dentro de um espírito cartesiano. Na verdade, o sentido real da expressão não diz respeito a uma “consciência plena”, e sim a uma “presença plena” a tudo que acontece em nós, e notadamente em nosso corpo.
Para desfrutarmos da realidade como ela é – e esta é a única realidade que existe –, devemos suspender os desejos de perfeição e de sucesso, pois eles nos estrangulam e oprimem. Para alguns, convém aceitar tranquilamente o fato de não sermos perfeitos. Para outros, aceitar o fato de não sermos amados, de não conseguirmos nos manter calmos, de ainda não dominarmos nossas emoções, etc. Tais colocações, na verdade, constituem a plataforma básica de todas as psicoterapias, da psicanálise à hipnose ou à de linha junguiana.
Todas elas não nos pedem um trabalho voluntário para que aprendamos a controlar o que se passa em nós – postura que, a rigor, nos transformaria em escravos submissos a nós mesmos. Muito mais que isso, as técnicas psicoterápicas – bem como as religiões verdadeiras – nos convidam a retomar o gosto pela vida, a deixar que a vida siga seu curso a partir da sua própria lógica – e não a partir dos condicionamentos e injunções da atual cultura da produtividade e do consumismo insustentáveis. Esse é o grande segredo que, uma vez desvendado, nos permite escapar das intoxicações provocadas pela nossa “civilização das 500 mil coisas”. Para a verdadeira realização da pessoa humana, é muito mais importante “ser” do que “fazer”.
Profusão de informações
Quanta informação é produzida hoje? A cada dia, centenas de milhões de pessoas escrevem textos, tiram fotos e fazem vídeos que enviam a seguir. Governos reúnem dados, de boletins de ocorrência a censos demográficos, e empresas globais coletam informações sobre compras, preferências de consumidores e tendências. Há pouco menos de um ano, a Universidade Northwestern (EUA) divulgou um cálculo sobre isso. Confira os números (que, ressalve-se, têm crescido exponencialmente a cada ano).