Primeira vacina usada no Brasil foi trazida ao país em 1804 de “braço em braço” por escravos enviados a Lisboa. Estrutura de vacinação contra varíola no período colonial transformou igrejas em postos de saúde.A varíola era uma infecção que assustava, e muito, no começo do século 19 — quem contraía a doença contagiosa tinha 30% de chances de morrer. Um grupo de comerciantes baianos resolveu se unir para trazer ao Brasil a solução que já vinha sendo utilizada com sucesso na Europa: a vacinação.

A ideia tinha sido desenvolvida por um médico britânico Edward Jenner (1749-1823), em 1796. Ele descobriu que os que lidavam com gado tinham resistência à doença — isso se devia à infecção prévia deles com uma versão atenuada do vírus, justamente a que acometia os bovinos. Teve, então, a ideia de inocular esse material, extraído do pus dos que desenvolviam a forma leve da doença, em pessoas saudáveis. Estava inventada a vacina.

Nos primórdios, a imunização ocorria graças a um método chamado de braço em braço. “As pessoas que se vacinavam deveriam retornar após uma semana para que os vacinadores retirassem parte da secreção da pústula gerada no local da aplicação”, explica o historiador Ricardo Cabral de Freitas, pesquisador na Fundação Oswaldo Cruz. “Esse material era utilizado para produzir mais vacinas para outros indivíduos, e assim por diante.”

Acontece que o transporte do imunizante também dependia desse processo. E foi o que precisou ser feito para a chegada da técnica ao Brasil. “Os comerciantes baianos que estavam por trás do empreendimento decidiram importar o ‘pus vacínico' da Europa. Mas não deu certo, porque esse insumo perdeu validade depois de mais de 40 dias de viagem marítima”, explica o pesquisador Paulo Rezzutti, autor de diversos livros sobre o Brasil pré-republicano. .

A solução foi usar crianças escravizadas. Conforme pesquisa realizada pelo historiador Fillipe dos Santos Portugal — relatada da dissertação A Institucionalização da Vacina Antivariólica no Império Luso-brasileiro nas Primeiras Décadas do Século 19 —, foram enviados sete meninos e meninas negros como cobaias para trazer a vacina de Lisboa para a Bahia. Desta forma, o pus pôde ser retirado ainda em alto-mar, chegando “fresco” ao Brasil.

A partir de 1805, esse mesmo método passou a ser utilizado para “transportar” o imunizante em terras da colônia. “Ou seja, enviava-se um certo número de indivíduos, geralmente escravizados, até o local de origem da vacina, e eles eram vacinados braço em braço, até chegar ao destino”, explica Freitas.

Família real

Com a transferência da família imperial para o Brasil, em 1808, uma série de melhorias acaba sendo implementada no Rio de Janeiro. Em 1811, foi criada a Junta da Instituição Vacínica da Corte. Segundo explica o historiador Victor Missiato, professor do Instituto Presbiteriano Mackenzie, é uma medida que fez parte do “rol de institucionalizações das políticas” do período. “Nos primeiros anos da corte portuguesa no Brasil, foram criados os primeiros cursos médicos em Salvador e Rio de Janeiro”, contextualiza ele.

O assunto era caro ao então príncipe-regente, d. João. Ele havia perdido um irmão, uma irmã e um cunhado em decorrência da varíola. Além disso, seu filho Francisco Antonio — irmão mais velho de daquele que se tornaria o primeiro imperador do Brasil, Pedro 1º — também foi vítima da doença em 1801, aos 6 anos de idade. “D. João vivia em um mundo em que todo mundo à sua volta morria de varíola”, comenta Rezzutti.

D. João só se tornaria rei por conta da postura antivacina de sua mãe, d. Maria 1º. “D. José [o irmão que morreu de varíola aos 27 anos] seria o herdeiro do trono e tinha sido criado para um dia governar Portugal. Mas a mãe deles, a rainha d. Maria I não quis vaciná-lo. E ele morreu”, acrescenta o pesquisador. “D. João virou o herdeiro e, quando assumiu como príncipe-regente, se voltou a favor da vacinação.”

A Junta Vacínica tinha a missão de promover a vacinação em massa na corte do Rio. E, em seguida, atuar como um centro difusor do imunizante para outras províncias brasileiras. “Procurava-se tornar o serviço contínuo e padronizar as práticas de vacinação, facilitando o acesso de um conjunto maior da população”, explica Freitas.

De acordo com o pesquisador, a atuação e o alcance do órgão foram irregulares. “Se ela teve o mérito de expandir o acesso à vacina, as dificuldades orçamentárias, a falta de pessoal e a adesão irregular à vacinação foram problemas constantes e limitaram o alcance da sua atuação”, conta.

Pesquisas em registros da época mostram que era significativo o número de escravos vacinados. Isto por duas razões: acreditava-se que o tráfico negreiro era um dos maiores difusores da doença e, é claro, havia um “interesse comercial”. “Contribuiria para conservar os ganhos dos senhores cujos cativos estivessem imunes”, diz Freitas.

“Avacalhar”

É claro que não era tarefa fácil convencer a população a ser vacinada. Se hoje ainda persiste um discurso antivacina em alguns setores, é possível imaginar como era 200 anos atrás, quando o método era uma novidade e o povo não tinha acesso a conhecimentos científicos. Rezzutti conta que a Junta Vacínica criou uma estratégia interessante: transformou as igrejas do Rio em postos de vacinação.

“A população acreditava que aquilo era uma coisa de Deus, afinal, se vinha da igreja, tinha de ser algo bom”, relata. Um desses pontos era a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, no centro da cidade. Aos domingos, dois médicos vacinavam os fiéis na hora da missa.

A vacinação, contudo, era obrigatória. “A política de saúda na época estava vinculada à fiscalização estatal e ao poder de polícia”, contextualiza Missiato. “Desse modo, diversos foram os eventos em que a força do Estado teve que atuar em forma de multas e até prisões. A política [de vacinação] apresentou instabilidades ao longo do século 19, com momentos de amortecimento da transmissão e novos surtos.”

Havia fake news, é claro. Registros da época mostram relatos de incredulidade e boataria relacionada à imunização. Muitos temiam que o procedimento transmitisse doenças de bovinos para seres humanos.

E a lenda não era que o vacinado seria transformado em jacaré, mas sim em vacas. “No âmbito mais popular, houve temores de que a vacina pudesse conferir feições animalescas para as pessoas, ou ‘avacalhá-las', para usar um termo da época”, conta Freitas.