09/01/2015 - 12:37
Os mapuches argentinos descobriram o caminho da inovação para preservar seu território.
Até o final do século passado, os índios mapuches de Villa Pehuenia, a 310 quilômetros ao norte da cidade de Neuquén, na Patagônia argentina, viviam como a maioria dos povos indígenas latino-americanos: sofrendo para preservar suas terras e identidade; pressionados pela integração compulsória ao mundo dos brancos; lutando contra a degradação do ambiente; e às voltas com problemas como alcoolismo, pobreza, urbanização e miscigenação.
Em 1998, o lonko (“chefe” em língua mapuche, o mapudungun) José Miguel Puel procurava soluções que pudessem desviar a comunidade da pobreza sem abrir mão da sua cultura ancestral. Para Puel, a busca de um negócio sólido e socialmente responsável virara uma obsessão, pois queria ver sua gente longe das calçadas vendendo suvenires baratos. Mas a chance não surgia.
O inesperado foi encontrá-la com a visita do coronel aposentado da armada Abel Balda, ex-comandante de missões na Antártida e criador do Centro de Esqui de Caviahue, também na Patagônia. Balda fora à Pehuenia para conhecer o belo cerro Batea Mahuida, escondido entre bosques milenares de pinheiros Araucaria araucana, várias crateras de vulcões e lagos azuis ofuscantes. Além da natureza imponente, o militar notou imediatamente que a neve era de ótima qualidade para esquiadores, mas suas conclusões não passaram disso. Seu pensamento congelara com o azul dos lagos Aluminé e Moquehue e as montanhas dos vulcões Batea Mahuida, Llanin, Villarica, Quetrupillán, Llanay e Lonquimay.
O que ninguém imaginava é que a visita despretensiosa fosse gerar o Parque de Nieve. Tão logo soube da presença do coronel na vila, lonko Puel o procurou para conversar e solicitar seu apoio, junto ao governo argentino, para um empreendimento exclusivamente mapuche. Pronto. Com pouca conversa, no final daquele mesmo dia os dois homens selaram o compromisso de criar o Parque de Neve Batea Mahuida.
Defesa do território
O direito ao território é a pré-condição para a sobrevivência física e cultural de uma população tradicional. “Sem a terra, o indígena não é ninguém”, diz Daniel Puel, o atual administrador do parque mapuche. “Sem a terra o povo perde-se a si mesmo e talvez seja melhor morrer”, ressalta.
Daniel era apenas um menino em 1998, mas participou das assembleias da comunidade em que o projeto foi discutido – mais de dez. No início, os mais velhos eram contra, porque na cosmovisão mapuche a montanha e a neve são entidades vivas, portanto sagradas, tanto quanto os animais e as árvores. “Como vão brincar com a neve”?, era a pergunta recorrente. Mas ,assim que o consenso foi alcançado, todos se engajaram no projeto.
Enquanto Balda se empenhava em conseguir a posse das terras do cerro para os mapuches, e também em levantar a soma necessária para o empreendimento, o lonko Puel mobilizava as 80 famílias das duas comunidades indígenas da região para elaborar o projeto do parque: como utilizá-lo, como aplicar os recursos, como profissionalizar empregados e como distribuir os lucros. Com tudo decidido, o chefe e os anciãos foram ao local escolhido para a construção das instalações e realizaram um ritual: pediram permissão ao cerro para instalar a estação de esqui, pois desejavam realizar mais coisas na vida, além de criar ovelhas e vacas.
No ano 2000, a Província de Neuquén reconheceu a soberania mapuche sobre as terras do cerro e destinou subsídios para o empreendimento. A virada do século foi duplamente comemorado pela comunidade. Em junho de 2002 o Parque de Nieve foi inaugurado numa área de 14.500 hectares, localizada a oito quilômetros da Villa Pehuenia, a 1.600 metros de altitude, sob minuciosa proteção ambiental. Atualmente, a estação dispõe de hotel, restaurante, loja de artesanato, posto de saúde (inclusive ambulância) e toda a infraestrutura necessária para esquiadores, pistas de esqui, teleférico, motos de neve e instrutores indígenas.
Daniel Puel não tem dúvida de que o empreendimento é um sucesso, pois, além de proporcionar 70 empregos à comunidade, o público vem crescendo ano após ano. Na última temporada de inverno, de junho a outubro de 2014, dez mil pessoas passaram pelo parque, o que possibilitou o pagamento dos salários, investimentos em manutenção, verbas para famílias carentes e subsídios para os jovens que desejam estudar em outras cidades argentinas.
Um restaurante com culinária mapuche – na qual se destacam pratos de carne com pinhões de auracária – e uma loja de artesanato indígena complementam a renda da instituição e atraem turistas. A estação dispõe de quatro pistas e quatro teleféricos. A inclinação da montanha é ideal para os esquiadores principiantes e famílias, mas fora das pistas há ladeiras ideais para o esporte radical.
Alberto Puel, o chef de cozinha do parque, explica que o empreendimento é uma exceção no contexto de uma Argentina que vive um momento econômico desfavorável. “Há comunidades aqui em Neuquén que estão vivendo situações difíceis. Eles não têm o que temos: estabilidade. Não podem se fortalecer nem se projetar. Nós também passamos por isso antes do ano 2000 e sabemos o quanto é difícil. O nosso projeto fortaleceu a comunidade.”
“O Parque de Neve não signifi ca só independência fi nanceira”, ressalta Daniel Puel. “Incorporamos o turismo sustentável como fonte de renda e motor do desenvolvimento de Pehuenia, que vivia só dos esportes de verão nos lagos.” Antes, o movimento acabava no outono e a vila quase fechava de abril a outubro. Atualmente, virou destino turístico durante todo o ano. Para o administrador, o Parque Batea Mahuida não oferece apenas neve, esqui, cavalgadas e passeios de motos. “Este projeto é único no mundo. Estamos no Mapu, o país mapuche, dos vulcões mágicos e das florestas milenares.”
Mas todos têm consciência de que o empreendimento só virou realidade porque houve consenso e esforço compartilhado entre a comunidade, o coronel Balda e o governo de Neuquén. “Todo o ano, em fevereiro, fazemos uma cerimônia privada para pedir permissão à montanha para esquiar nas ladeiras. Tudo o que você vê está vivo, neve, montanha, árvores, pássaros, lagos, vulcões, todos são parceiros para os mapuches.”
*****
ORGULHO E PERSISTÊNCIA
Pegue o mapa da América do Sul e observe a área compreendida entre os paralelos 36 e 46. Ali, no centro-sul do Chile e da Argentina viviam, até a chegada dos espanhóis, 2 milhões de mapuches. Em língua mapudungun, mapu quer dizer “terra” e che, “gente”. Originários da região de Neuquén, os antigos mapuches expandiram seu território além dos Andes até o Pacífi co, trocaram hábitos nômades pelo sedentarismo e, após o contato com os espanhóis (que os chamavam de araucanos), se dedicaram à agricultura e ao pastoreio. Nas migrações, conquistaram ou deslocaram para longe outros povos nativos como os picunches e os huilliches.
Obstinados em defender seu vasto território, os mapuches lutaram 300 anos contra a coroa espanhola. Em 1641, antes da independência do Chile e da Argentina, os espanhóis reconheceram a nação mapuche por meio de vários tratados. Entretanto, após a independência dos dois países, os acordos deixaram de ser respeitados por ambos os governos, que, a partir da metade do século XIX, empreenderam a “Conquista da Patagônia”, no Chile, e a “Campanha do Deserto”, na Argentina.
Durante séculos os mapuches conseguiram desarticular as ações militares desencadeadas pelos espanhóis, mas não tiveram sucesso contra os militares chilenos e argentinos. Várias aldeias foram dizimadas. O massacre na Argentina foi intenso. A vitória fi nal sobre os mapuches rendeu ao comandante das tropas, o general Julio Roca, a presidência da nação, em 1880. Derrotados, os índios
foram reduzidos a “reduções” no Chile e a “reservas” na Argentina.
Daniel Puel diz que seu povo não guarda rancor, só pesar. “Mudamos o olhar. Não queremos ficar presos ao passado.” Para ele, não há grande diferença entre mapuches argentinos ou chilenos. No Chile, calcula-se que existam 500 mil mapuches, especialmente na região administrativa de Araucanía. Na Argentina, o censo indica pouco mais de 200 mil “Isso, sem contar os descendentes que se miscigenaram. Aí poderíamos passar, somando os dois países, de 1 milhão”, contabiliza Daniel.
Se em Villa Pehuenia o futuro é otimista, o mesmo não acontece em outras áreas mapuches, em geral muito pobres. Um sinal amarelo começou a piscar recentemente na Patagônia argentina, quando mapuches se rebelaram, em novembro, contra a instalação de torres petrolíferas em suas terras. No Chile, também há resistência militante contra a construção de torres de alta tensão em território indígena. A
afi rmação da vontade de viver diferente dos mapuches continua.