Organização de origem obscura diz estar ajudando pessoas a emigrar do território palestino, mas tem sido acusada de facilitar “transferência forçada”.Não foi o primeiro voo desse tipo partindo de Israel, mas foi o primeiro a receber tamanha atenção. No final da semana passado, 153 palestinos da Faixa de Gaza chegaram à África do Sul em um voo fretado do aeroporto israelense de Ramon, mas sem a documentação correta.

Dado o rígido controle de Israel sobre suas fronteiras – e sobre as do território palestino que os passageiros tiveram que atravessar para chegar ao aeroporto israelense –, as autoridades sul-africanas não conseguiam entender como o avião havia conseguido decolar.

Mais tarde, descobriu-se que a viagem dos palestinos havia sido organizada por uma organização chamada Al-Majd Europe.

Em seu site, a organização afirma que realiza “evacuações humanitárias”. Mas ativistas vêm expressando preocupação com os voos organizados pela Al-Majd Europe desde meados deste ano.

Organização obscura

A Al-Majd afirma ter sido fundada na Alemanha em 2010 e estar atualmente localizada em Jerusalém. No entanto, não existe nenhuma empresa ou organização beneficente com esse nome nos registros alemães, e pesquisadores israelenses confirmam a mesma situação em Israel.

O site da Al-Majd utiliza fotos de pessoas em outras situações de crise, alegando serem suas. O endereço IP do site, e consequentemente sua localização real, está oculto por um software de privacidade.

O botão “doar” no site não funciona. Uma pesquisa da DW em diversos rastreadores de Bitcoin – que mostram quanto dinheiro uma conta gastou e recebeu – indica que a Al-Majd recebeu apenas cerca de 106 dólares (R$ 564) em criptomoedas através da conta Bitcoin que lista para doações. Isso apesar de a organização afirmar que utiliza doações para auxiliar os necessitados.

Os passageiros palestinos que viajaram com a Al-Majd para a África do Sul disseram a jornalistas que pagaram entre 1,5 mil e 2 mil dólares, mas que o valor foi enviado para contas pessoais.

A DW procurou a Al-Majd através do endereço de e-mail listado no site da organização para pedir esclarecimentos, mas não obteve resposta.

Nesta semana, uma investigação do jornal israelense Haaretz revelou mais anomalias, incluindo a ligação de Al-Majd com Tomer Jamar Lind, um indivíduo com dupla cidadania israelense e estoniana, residente em Londres. Ele também não reagiu às tentativas de contato da reportagem

As empresas de táxi aéreo – Fly Yo, com sede na Romênia, e Kibris Turkish Airlines, com sede no Chipre – que levaram os palestinos para a África do Sul são ambas de propriedade israelense.

Operação do governo israelense?

Por conta disso, ativistas, políticos sul-africanos e a mídia levantaram preocupações de que a Al-Majd possa estar envolvida em um plano para transferir palestinos para fora de Gaza.

“Os relatos sobre pessoas sendo levadas de avião pela Al-Majd, para destinos às vezes desconhecidos, são profundamente preocupantes”, afirma Tania Hary, diretora executiva da Gisha, organização israelense sem fins lucrativos que defende a liberdade de movimento dos palestinos. “Parece que essa entidade privada questionável está se aproveitando do desespero das pessoas e começando a cumprir silenciosamente a visão de Israel para a transferência de palestinos.”

Em fevereiro de 2025, o presidente dos EUA, Donald Trump , falou sobre seu plano para transformar Gaza em uma “riviera” , o que exigiria a transferência de moradores para outros países. No mesmo mês, a Al-Majd começou a anunciar seus serviços para palestinos nas redes sociais.

Em março, o governo israelense anunciou a criação de uma “diretoria de emigração voluntária” dentro do Ministério da Defesa. Grupos de direitos humanos em Israel soaram o alarme na época e dizem que ainda não têm muitas informações sobre a diretoria.

Hari afirma que uma política de “emigração voluntária” de Gaza é apoiada por políticos israelenses de alto escalão e que agências de inteligência israelenses já enviaram mensagens de texto para moradores de Gaza “convidando-os a explorar opções de saída”.

A DW questionou o Ministério da Defesa de Israel sobre possíveis ligações com a Al-Majd Europe, mas não recebeu resposta até o momento da publicação desta matéria.

“Ajudando pessoas a viver”

A DW conseguiu contatar um homem chamado Omar, cujo número está listado no site da Al-Majd. Em uma entrevista via WhatsApp, ele disse ser um palestino residente em Jerusalém, mas não forneceu mais detalhes, incluindo seu sobrenome, por motivos de segurança.

Ele disse à DW que especulações sobre as ligações da Al-Majd com o governo israelense estão sendo disseminadas por dois grupos: o grupo militante Hamas , classificado por muitos países como organização terrorista, e a Autoridade Palestina, que governa a Cisjordânia ocupada. Ele insinuou que esses dois grupos não querem que as pessoas deixem Gaza.

Omar também afirmou que, para levar as pessoas de Gaza para o aeroporto em Israel, a Al-Majd precisou entrar em contato com o Coordenador das Atividades Governamentais nos Territórios (Cogat), órgão que administra os negócios oficiais de Israel em Gaza. O Cogat também faz parte do Ministério da Defesa de Israel.

“Estou ajudando meu povo em Gaza, e isso não é emigração”, insistiu Omar. “Estou ajudando pessoas que querem viver, não morrer dentro de Gaza.”

Mas Omar se recusou a responder a perguntas mais incisivas, como sobre suas ligações com Lind, como entrou em contato com empresas de fretamento internacionais de propriedade israelense e por que os links no site da Al-Majd não funcionam. Ele também não explicou as finanças da Al-Majd e disse que “não se lembrava” de quantos palestinos haviam deixado Gaza com a empresa.

Portanto, permanece incerto se a Al-Majd tem alguma ligação com o governo israelense, se essa poderia ser uma iniciativa privada de cidadãos em apoio às políticas governamentais ou se é simplesmente um empreendimento para ganhar dinheiro.

Cooperação com autoridades israelenses

O que é certo, porém, é que as forças de segurança israelenses teriam que cooperar com os voos fretados que deixaram o país.

Israel restringe a liberdade de movimento dos palestinos desde 1967, quando ocupou os territórios palestinos. Essas restrições evoluíram de acordo com o nível de tensão entre Israel e os grupos militantes palestinos. Antes do conflito atual, palestinos podiam sair de Gaza para trabalhar, para tratamento médico ou em “casos humanitários excepcionais”, como o casamento ou funeral de um parente de primeiro grau.

Hoje, com o bloqueio israelense a Gaza, desde o ataque do Hamas a Israel em 7 de outubro de 2023, é ainda mais difícil deixar o território costeiro – isso apesar de, desde o anúncio da diretoria de emigração voluntária, reportagens da mídia israelense terem sugerido que isso tenha se tornado mais fácil.

Não há cifras oficiais sobre quantos deixaram Gaza.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) organizou 2.589 evacuações médicas este ano, com 5 mil acompanhantes. Acredita-se também que, no início de 2024, mais de 100 mil palestinos tenham se dirigido ao Egito. Mas, o número de partidas diminuiu desde então, como relatou em maio passado o jornal Times of Israel.

Emigração é tema sensível

A questão da saída de palestinos de Gaza, mesmo agora, é politicamente delicada.

“De acordo com o direito internacional, toda pessoa tem o direito de viver em seu país com segurança e dignidade, de sair por sua própria segurança ou por qualquer outro motivo e de retornar a ele”, explica Omar Shakir, diretor para Israel e Palestina da ONG Human Rights Watch. “O desafio no contexto israelense-palestino é que o governo israelense tem um histórico de décadas de impedir que refugiados palestinos exerçam seu direito de retornar para casa.”

Em maio, uma pesquisa do Centro Palestino de Pesquisa Política e de Opinião Pública revelou que cerca de metade dos palestinos nos territórios ocupados estariam dispostos a solicitar a emigração. Antes do início do conflito atual, esse número era de cerca de 25%. E sob as postagens da Al-Majd Europe no TikTok, é possível ver centenas de comentários de palestinos desesperados.

“Nas condições devastadoras de hoje em Gaza, qualquer ‘incentivo’ desse tipo não pode ser considerado livre escolha”, argumenta Hary, diretor da Gisha. “Ainda mais porque Israel se recusa a garantir que as pessoas que saem poderão retornar. Em conjunto, as condições insuportáveis ​​e a promoção oficial da ‘saída voluntária’ refletem um padrão de transferência forçada disfarçada de livre escolha.”

A transferência forçada de uma população é um crime contra a humanidade segundo o direito internacional.

Não há nada de voluntário na saída dos palestinos de Gaza, confirma Shakir, da Human Rights Watch.