25/04/2017 - 8:00
A bordar a história do Brasil não pela narração dos grandes feitos, mas pela pesquisa dos fatos do dia a dia, da vida da população anônima, é a aventura desenvolvida pela historiadora carioca Mary del Priore num dos mais atraentes projetos editoriais concebidos nessa área, a tetralogia História da Gente Brasileira, publicada pela Editora LeYa. Dois volumes da série já foram lançados – o volume 1, “Colônia”, em abril de 2016, e o 2, “Império”, no fim do ano passado. O terceiro e o quarto, que tratam da República, estão programados respectivamente para junho e outubro deste ano. Mary fala sobre o desafio de descrever a história oculta de nossa terra e nossa gente na entrevista a seguir.
PLANETA – O que despertou em você o interesse para o tema da vida cotidiana brasileira? Foi algum documento encontrado, uma inspiração vista no exterior, uma pesquisa anterior que evoluiu para esta?
MARY – O que me levou a estudar o cotidiano foi a vontade de aproximar leitores do passado. Do seu passado. De colocá-los na pele de seus avós. Se tratamos, todo o tempo, de grandes heróis e batalhas, em vez de aproximá-los de nossa história, que é tão rica e interessante, nós os deixamos apenas como espectadores. O que desejo é fazê-los viver outras vidas e outras emoções, sofrer outras dores. E é isso que a recriação do cotidiano permite. Nada de datas ou nomes, mas sensibilidades e fatos da vida diária.
PLANETA – Quais foram as principais fontes dessas informações sobre o cotidiano brasileiro?
MARY – Tudo é fonte para o historiador. De uma paisagem modificada pela mão do homem à arquitetura de uma casa, aos alimentos que são consumidos, às formas de lazer, à organização da família ou aos instrumentos de trabalho que se inventam. Sobre qualquer assunto, os documentos impressos são milhares e as imagens também. Cabe ao historiador selecioná-los de acordo com o tema que deseja tratar. Temos excelentes arquivos, privados e públicos, e não há dificuldade em achar informações.
PLANETA – É mais simples ou mais complicado obter informações sobre as coisas pequenas do dia a dia do que sobre os grandes fatos históricos?
MARY – Eu diria que é mais interessante. Pois o cotidiano está nos gestos repetitivos, nos objetos miúdos que não percebemos, nas atitudes que julgamos “naturais”, mas que são culturalmente construídas. Então, é preciso prestar atenção nos detalhes, no “pequeno”, trabalhar com lupa. É outro olhar sobre a história. É como olhar pelo buraco da fechadura, para saber como vivia nossa gente no passado.
PLANETA – Os tópicos tratados foram escolhidos em função de uma evolução ao longo dos quatro livros? Ou pesaram mais outros aspectos, como o material disponível naquele período, a curiosidade da questão, a relevância de um ou outro dentro do período tratado?
MARY – A ideia é percorrer, por meio de três grandes eixos – terra e trabalho; consumo e lazer; e os ritmos da vida – 500 anos de história. Os quatro volumes indicarão as mudanças e permanências nos nossos usos e costumes, na forma de encarar valores, na criatividade, nas formas de ver o mundo, do período colonial até o ano 2000.
PLANETA – Você acredita que, por meio desses livros, é possível se desenhar uma identidade brasileira?
MARY – A identidade de um indivíduo é o reconhecimento de si, por ele mesmo e pelos outros. A nossa está em constante renovação, modelada pelo contato com outras culturas. O Brasil foi e é um país de imigração e soube misturar pessoas e costumes de maneira ímpar. Valorizo nossa mestiçagem, que considero uma das características maiores e melhores de nossa identidade.
PLANETA – Você considera que essa é uma “biografia” do povo brasileiro em geral?
MARY – Essa é uma bela ideia, mas, não foi o ponto de partida. O objetivo inicial foi aproximar o leitor do seu passado, para conhecê-lo melhor e, por que não, gostar mais dele. A luta da gente brasileira para construir uma cultura num continente novo e desconhecido foi enorme e se valeu de muita criatividade e empreendedorismo. Apontar a mobilidade social, a capacidade de adaptação e invenção, enfim, mostrar como a “mão do brasileiro” é poderosa, foi o fio condutor.
PLANETA – O brasileiro costuma se vangloriar das manias de limpeza e de tomar banho, que hoje pelo menos seriam características da nossa cultura, principalmente quando comparada com costumes internacionais. Nos dois primeiros livros, porém, a questão da higiene é apresentada como de pouca relevância para o brasileiro. Quando houve essa mudança e o que a causou? Esse é o tipo da memória coletiva que o povo prefere esquecer?
MARY – Esquecer, não, pois se trata apenas de desconhecimento da história. Durante séculos acreditou-se que a água era condutora de doenças que entravam no corpo, através dos poros. Por isso, mas também por razões religiosas – não se despir, não expor o corpo, etc. –, o brasileiro foi avesso aos banhos até o início do século 20. Da Colônia até os anos 1920, houve gente que se limitava a lavar pés, mãos e pescoço. Banho de corpo inteiro era raro, porque não havia água encanada e poucas casas dispunham de poço. A água sempre foi um bem caro e raro, daí a parcimônia com que era usada. Depois havia gestos que buscavam melhorar a aparência, como limpar os dentes com pauzinhos, esfregar cebolas nas axilas ou tomar banho de cheiro com ervas.
PLANETA – A rusticidade do modo de viver por tanto tempo e a evolução do conceito de casa (do teto destinado a se proteger para a ideia do viver bem), na sua opinião, constituem um processo natural de terras conquistadas ou foram um traço em especial no caso da história brasileira?
MARY – A rusticidade foi uma característica quando não havia artesãos suficientes ou preparados para oferecer melhores serviços. Tomamos emprestadas dos indígenas muitas das soluções para morar – desde a cobertura da casa, com palha de coqueiro, ao hábito da rede de dormir. Com a evolução das cidades, passou-se a trazer vidros da Inglaterra ou varandas de ferro ornamentado da França. A burguesia brasileira do Império importou, além de técnicas e engenheiros, modas da Europa: das privadas de banheiro em opalina às flores do jardim como rosas e cravos. E em lugar de trinca-ferros, cantava o canário belga! As formas de morar e suas mudanças contam a nossa história.
PLANETA – Você acredita que a vinda da corte portuguesa trouxe para o Brasil a cultura da corrupção tão marcada como é até hoje?
MARY – Não. Ela já estava aqui bem antes. Basta ler as cartas dos vice-governadores gerais aos reis de Portugal. O marquês de Lavradio, por exemplo, lamentava os desvãos que existiam nas alfândegas, por onde escoavam ouro e contrabando. Senhores de engenho compravam juízes com barricas de açúcar. E a palavra “chupancinha” aparece na correspondência do início do século 19, como sinônimo de propina.
PLANETA – Na sua opinião, os brasileiros evoluíram para uma postura mais preservacionista ao longo da sua história ou seguimos um processo crônico de empobrecimento ecológico, só que de forma mais mascarada?
MARY – Eu diria que, como em outros aspectos de nossa história, temos duas caras. Por um lado, preservacionistas a ponto de termos criado “jardins botânicos”, desde o final do século 18, e termos amparado cientistas e botânicos que vieram de todas as partes para estudar nossa fauna e flora. Por outro lado, impiedosos e insensíveis, pois sem a destruição da Mata Atlântica que cobria nosso litoral, praticamente de norte a sul, não haveria colonização. O machado e o fogo permitiram a instalação de colonos e uma forma de produção – o canavial e depois o cafezal – que não teve piedade das florestas nem de seus habitantes. Ainda hoje, oscilamos entre fazer da soja e dos cítricos nossos produtos de exportação e preservar nosso meio ambiente. Uma reflexão sobre esse assunto se faz obrigatória desde os primeiros anos de escola.