04/10/2022 - 8:57
Você pode não perceber, mas cada vez que você se lembra de uma memória – como sua primeira vez andando de bicicleta ou entrando num baile na juventude – seu cérebro muda a memória levemente. É quase como adicionar um filtro do Instagram, com detalhes sendo preenchidos e informações sendo atualizadas ou perdidas a cada recordação.
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“Estamos inadvertidamente aplicando filtros às nossas experiências passadas”, disse Steve Ramirez, neurocientista da Universidade de Boston (EUA). Segundo ele, mesmo que uma memória filtrada seja diferente da original, você pode dizer qual é essa imagem básica, na maioria das vezes.
Natureza maleável
“A memória é menos uma gravação de vídeo do passado e mais reconstrutiva”, afirmou Ramirez, professor assistente de ciências psicológicas e cerebrais do Colégio de Artes e Ciências da Universidade de Boston. A natureza maleável da memória é tanto uma bênção quanto uma maldição: é ruim se lembrarmos de detalhes falsos, mas é bom que nossos cérebros tenham a capacidade natural de moldar e atualizar memórias para torná-las menos potentes, especialmente se for algo assustador ou traumático.
Então, e se for possível usar a natureza maleável de nossas memórias a nosso favor, como forma de curar distúrbios de saúde mental como depressão e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT)? É exatamente para isso que Ramirez e sua equipe de pesquisa estão trabalhando. Depois de anos estudando a memória em camundongos, eles descobriram não apenas onde o cérebro armazena memórias positivas e negativas, mas também como diminuir o volume de memórias negativas estimulando artificialmente outras mais felizes. Os resultados são apresentados em dois estudos, um publicado na revista Communications Biology e outro publicado na Nature Communications.
“Nossa ideia de um milhão de dólares é: e se uma solução para alguns desses transtornos mentais já existir no cérebro? E se a memória for uma maneira de chegar lá?”, disse Ramírez, autor correspondente dos dois estudos. Nos artigos, ele e sua equipe demonstram o poder de nossas memórias emocionais e como nossas experiências – e a maneira como as processamos – deixam pegadas físicas reais no cérebro.
Mapeamento de memórias positivas e negativas
Um dos passos mais importantes para usar a memória a fim de tratar distúrbios relacionados à memória é entender onde existem memórias positivas e negativas no cérebro e como distinguir entre as duas. As memórias são armazenadas em todas as diferentes áreas do cérebro, e as próprias memórias individuais existem como redes de células chamadas engramas. O laboratório de Ramirez está particularmente interessado nas redes de memórias localizadas no hipocampo do cérebro, uma estrutura em forma de caju que armazena informações sensoriais e emocionais importantes para formar e recuperar memórias.
Em suas descobertas, Ramirez, Monika Shpokayte (autora principal do artigo da Communications Biology) e uma equipe de neurocientistas da Universidade de Boston mapearam as principais diferenças moleculares e genéticas entre memórias positivas e negativas, descobrindo que as duas são realmente notavelmente distintas em vários níveis. Acontece que as memórias emocionais, como uma memória positiva ou negativa, são fisicamente distintas de outros tipos de células cerebrais – e distintas umas das outras. “Isso é muito louco, porque sugere que essas memórias positivas e negativas têm seu próprio espaço separado no cérebro”, afirmou Ramirez.
Diferenças em quase tudo
Os autores do estudo descobriram que as células de memória positiva e negativa são diferentes umas das outras em quase todos os aspectos – elas são armazenadas principalmente em diferentes regiões do hipocampo, elas se comunicam com outras células usando diferentes tipos de vias e a maquinaria molecular em ambos os tipos de células parece ser distinta.
“Então, há [potencialmente] uma base molecular para diferenciar entre memórias positivas e negativas no cérebro”, observou Ramirez. “Agora temos um monte de marcadores em que sabemos diferenciar positivo de negativo no hipocampo.”
Ver e rotular memórias positivas e negativas só é possível com o uso de uma ferramenta avançada de neurociência, chamada optogenética. Essa é uma maneira de enganar os receptores das células cerebrais para que respondam à luz – os pesquisadores lançam uma luz laser inofensiva no cérebro para ativar as células que receberam um receptor que responde à luz. Os pesquisadores também podem codificar memórias positivas e negativas por cores inserindo uma proteína fluorescente que é estimulada pela luz, de modo que as redes de células de memória positiva brilhem em verde, por exemplo, e as redes de células negativas brilhem em vermelho ou azul.
Religando memórias ruins
Antes que os pesquisadores rotulem uma memória em um camundongo, eles primeiramente precisam fazer a memória. Para isso, eles expõem os roedores a uma experiência universalmente boa ou desagradável – uma experiência positiva pode ser mordiscar um queijo saboroso ou socializar com outros ratos; uma experiência negativa pode ser receber um choque elétrico leve, mas surpreendente, nos pés. Uma vez que uma nova memória é formada, os cientistas podem encontrar a rede de células que mantêm essa experiência e fazer com que elas brilhem em uma determinada cor.
Uma vez que possam ver a memória, os pesquisadores podem usar luz laser para ativar artificialmente essas células de memória – e como a equipe de Ramirez também descobriu, reescrever as memórias negativas. No artigo publicado na Nature Communications, eles descobriram que a ativação artificial de uma experiência positiva reescreveu permanentemente uma experiência negativa, diminuindo a intensidade emocional da memória ruim.
Os pesquisadores fizeram os camundongos recordarem uma experiência negativa e, durante a recordação da memória do medo, eles reativaram artificialmente um grupo de células de memória positiva. A memória positiva concorrente, de acordo com o artigo, atualizou a memória de medo, reduzindo a resposta de medo no momento e muito tempo depois que a memória foi ativada. O estudo baseia-se em trabalhos anteriores do laboratório de Ramirez, que descobriram que é possível manipular artificialmente memórias passadas.
Ativar uma memória positiva foi a maneira mais poderosa de atualizar uma memória negativa, mas a equipe também descobriu que não é a única maneira. Em vez de visar apenas as células de memória positivas, eles também tentaram ativar uma memória neutra – uma experiência padrão e chata para um animal – e depois tentaram ativar todo o hipocampo, descobrindo que ambas as estratégias eram eficazes.
Momento crítico
“Se você estimular muitas células não necessariamente ligadas a qualquer tipo de memória, isso pode causar interferência suficiente para interromper a memória do medo”, disse Stephanie Grella, autora principal do artigo publicado na Nature Communications e ex-bolsista de pós-doutorado no laboratório de Ramirez, que recentemente iniciou o Memory & Neuromodulatory Mechanisms Lab da Universidade Loyola (EUA).
Embora a ativação artificial de memórias não seja possível em humanos, as descobertas ainda podem se traduzir em ambientes clínicos, afirmou Grella. “Porque você pode perguntar à pessoa: ‘Você pode se lembrar de algo negativo, você pode se lembrar de algo positivo?’”, observou ela – perguntas que não se pode fazer a um rato.
Grella sugere que pode ser possível anular os impactos de uma memória negativa, que afetou o estado mental de uma pessoa, fazendo com que a pessoa recorde a memória ruim e cronometrando corretamente uma lembrança vívida de uma memória positiva em um ambiente terapêutico.
“Sabemos que as memórias são maleáveis”, disse Grella. “Uma das coisas que descobrimos neste artigo foi que o momento da estimulação foi realmente crítico.”
A busca por mudanças no jogo
Para outros tipos mais intensivos de tratamento para depressão grave e TEPT, Grella sugeriu que poderia eventualmente ser possível estimular grandes áreas do hipocampo com ferramentas como estimulação magnética transcraniana ou estimulação cerebral profunda – um procedimento invasivo – para ajudar as pessoas a superar esses transtornos relacionados à memória. Ramirez ressaltou que cada vez mais neurocientistas começaram a adotar tratamentos experimentais envolvendo substâncias psicodélicas e drogas ilícitas. Por exemplo, um estudo de 2021 descobriu que doses controladas de MDMA (ecstasy) ajudaram a aliviar alguns sintomas graves de TEPT.
“O tema aqui é usar alguns aspectos de recompensa e positividade para reescrever os componentes negativos do nosso passado”, dissez Ramirez. “É análogo ao que estamos fazendo em roedores, exceto em humanos – ativamos artificialmente memórias positivas em roedores e, em humanos, o que eles fizeram foi dar-lhes pequenas doses de MDMA para ver se isso poderia ser suficiente para reescrever algumas das componentes traumáticos dessa experiência.” Esses tipos de experimentos apontam para a importância de continuar a explorar os métodos clínicos e benéficos de manipulação da memória, mas é importante notar que esses experimentos foram feitos sob supervisão médica e não devem ser tentados em casa.
Por enquanto, Ramirez está animado para ver como esse trabalho pode ampliar ainda mais os limites da neurociência e espera ver pesquisadores experimentando ideias ainda mais inovadoras que podem transformar a medicina no futuro: “Queremos mudanças no jogo, certo? Queremos coisas que serão muito mais eficazes do que as opções de tratamento atualmente disponíveis.”