Análise realizada em peixes adquiridos em mercados e feiras livres de cidades da região amazônica demonstra que mais de 20% dos animais ali comercializados têm contaminação de mercúrio acima do considerado seguro para a alimentação humana.

O estudo foi realizado por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), da Universidade Federal de Lavras, do Instituto de Pesquisa e Formação Indígena, do Instituto Socioambiental e das organizações WWF-Brasil e Greenpeace Brasil e divulgado no final de maio.

Os pescados foram obtidos entre março de 2021 e setembro de 2022 em 17 pontos diferentes de seis estados amazônicos: Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia e Roraima. Em todas as localidades foram registrados peixes com níveis de contaminação acima do limite aceitável — o nível máximo considerado seguro para a ingestão, conforme estipulado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), é de 0,5 micrograma de metal por grama do alimento.

O pior cenário encontrado foi em Roraima, onde 40% dos peixes analisados tinham índice de contaminação maior do que o tolerável. No Acre, o índice foi de 35,9%. Os estados com menores indicadores foram Amapá, com 11,4%, e Pará, com 15,8%. Na média, 21,3% que chegam às mesas das famílias amazônicas têm níveis considerados altos de mercúrio.

A amostragem concluiu que em Rio Branco o potencial de ingestão de mercúrio da população pode chegar a 31,5 vezes o limite aceitável.

Danos à saúde

Uma das autoras do trabalho, a bióloga e sanitarista Ana Claudia Vasconcellos, pesquisadora da Fiocruz, ressalta a preocupação com a saúde da população da região. “Existem milhares de estudos que indicam que o consumo de pescado contaminado por mercúrio provoca inúmeros danos ao sistema nervoso central e cardiovascular de humanos, que podem ser identificados por uma variedade de sinais e sintomas”, afirma à DW.

Vasconcellos enumera que, comumente, essas pessoas podem desenvolver problemas de visão, de audição, de coordenação motora e de equilíbrio. Além de hipertensão arterial. Gestantes precisam redobrar os cuidados. “É importante destacar que a exposição humana durante o período pré-natal pode provocar danos ainda mais graves do que em adultos, como atraso cognitivo, alterações no neurodesenvolvimento e até paralisia cerebral”, alerta a pesquisadora.

O químico Rogério Machado, que estudou os efeitos do mercúrio durante seu mestrado, foi procurado pela reportagem para comentar os resultados da pesquisa. Ele afirmou que a contaminação de mercúrio pode acarretar uma abreviação de 5 a 25 anos de vida de uma pessoa.

Professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie e na Faculdade São Bernardo do Campo, Machado explica que o mercúrio líquido, em si, se ingerido praticamente não seria absorvido pelo ser humano — menos de 0,1%.

“O problema é que, uma vez nos rios, o mercúrio se converte em metilmercúrio, uma substância organometálica que o organismo humano absorve em mais de 95%”, explica ele. Essa transformação, feita por bactérias, pode ocorrer nas plantas ou mesmo no organismo dos peixes. “Ou seja: aí o ser humano se contamina completamente e o mercúrio vai acabar nos rins, no fígado, no sistema nervoso central, nos lugares muito irrigados por sangue. E vai apodrecer as pessoas, aos poucos.”

Por conta de um fenômeno tecnicamente chamado de biomagnificação, o mercúrio presente na carne do peixe gradualmente se acumula ao longo da cadeia alimentar. Isso significa que peixes carnívoros podem ter mais material tóxico acumulado do que os herbívoros. “Por isso a piranha, a piraíba, o filhote, o pirarucu e o tucunaré têm níveis mercuriais mais elevados do que espécies não-carnívoras, como o matrinchã, o pacu, o aracu e o tambaqui”, exemplifica a bióloga Vasconcellos.

Do ponto de vista da saúde pública, essa é uma estratégia que precisa ser adotada, como forma de mitigação a partir de um ajuste na dieta. “Principalmente para gestantes ou mulheres que pretendem engravidar”, enfatiza a pesquisadora. “Nesses casos, é importante restringir o consumo de peixes carnívoros e priorizar o consumo de peixes herbívoros.”

Meio ambiente

De acordo com a bióloga, é muito difícil zerar o problema, mas “para diminuir o impacto da contaminação” seria necessário “interromper a atividade garimpeira na Amazônia o quanto antes”. Tóxico, o metal pesado é utilizado no processo do garimpo.

Vasconcellos frisa que, uma vez lançado na natureza, o mercúrio “pode permanecer até 100 anos no ambiental e não existem estratégias eficazes para a remoção” do mesmo em áreas “tão extensas quanto a Bacia Hidrográfica da Amazônia”.

“Não vou dizer que é irreversível, mas é muito difícil reverter essa contaminação”, concorda o químico Machado. Ele explica que até hoje não foram desenvolvidos métodos eficazes para retirar esse mercúrio de rios.