26/12/2013 - 16:14
Os manifestantes que vandalizaram o Instituto Royal, em São Roque (SP), para libertar cachorros beagles usados em testes científicos, podem não conhecer o filósofo australiano Peter Singer. Mas os livros dele mobilizam gente em todo o mundo para defender os animais e o planeta.
Poucas vezes se vê um filósofo despertar emoções numa plateia como Peter Singer faz. Listado entre as 100 pessoas mais influentes do mundo em 2005, pela revista Time, o conferencista é um dos raros com o dom da persuasão. Não se trata de concordar ou não com o que diz. Seu discurso, que levanta questões éticas fundamentais, causa desconforto. Até que ponto somos coniventes e omissos diante da pobreza extrema e dos maus-tratos infringidos a animais ou responsáveis pela destruição do planeta? Enquanto fala, é como se, a todo o momento, Singer instigasse quem ouve e dissesse: “Mexam-se. Façam alguma coisa. Não finjam que não é com vocês.”
A atitude provocativa, transmitida em tom amigável e sem qualquer agressividade, é a tônica das apresentações. Não foi diferente em São Paulo, onde Singer esteve a convite do seminário Fronteiras do Pensamento. Num dos momentos incômodos da conferência, foi exibida a foto de um porco deitado, confinado numa baia exígua de engorda, sem espaço para se mover nem mesmo para ficar em pé. “No futuro, quando avaliarmos a maneira como hoje tratamos os animais, veremos que é uma atrocidade comparável à visão que, atualmente, temos da escravidão”, afirmou.
O gosto pelas frases de impacto também alimenta as críticas. A principal sustenta que Peter Singer é politicamente correto demais. Com mais de 20 livros publicados sobre ética e seus desdobramentos na vida cotidiana, o fi lósofo tem opiniões que costumam despertar reações extremadas. Há quem o acuse de explorar a pieguice. E há quem o venere como um paradigma da ética.
Sua posição favorável à eutanásia, por exemplo, já lhe valeu o apelido de “Dr. Morte”. Em São Paulo, Singer reiterou a defesa da prática para doentes terminais. “Há que se respeitar quando a pessoa não quer mais viver. Não entendo por que são os governos que devem determinar se a vida pode ou não ser abreviada, em situações em que não há esperança”. Já no caso do aborto, outra controvérsia, aprova o procedimento e não o considera criminoso desde que praticado nas primeiras semanas do embrião, quando “não há consciência”. Ele observa: “Acho que isso deve ser uma decisão das mulheres. Em inúmeras situações, a interrupção da gravidez pode evitar sofrimentos desnecessários.”
Foi com a bandeira da defesa dos animais e o livro Libertação Animal, publicado em 1975 (no Brasil pela editora WMF Martins Fontes), que Singer se tornou referência internacional. Em Melbourne, onde nasceu, fundou o Centro para a Bioética Humana. Mas a notoriedade que conquistou não foi sufi ciente para ajudá-lo a se eleger quando disputou uma vaga no Senado pelo Partido Verde, em 1996. Em vez de insistir na carreira política, o fi lósofo se mudou para os Estados Unidos, onde, desde 1999, é professor de bioética na Universidade de Princeton. Desde então, além de escrever livros, corre o mundo para promover suas ideias.
Na intervenção paulistana, Singer ressaltou os quatro principais desafi os éticos da humanidade no século XXI: a pobreza global, as mudanças climáticas, o tratamento dos animais e a salvação da nossa espécie da extinção.
Um bilhão de pessoas vive com uma renda diária inferior a US$ 1,25, observa, valor que o Banco Mundial considera mínimo para satisfazer às necessidades básicas. São pessoas que sofrem inúmeras implicações decorrentes da pobreza. São subnutridas, não têm acesso à água potável, não podem pagar por serviços de saúde nem mandar fi lhos para a escola. Dessa fatia da população mundial, 7 milhões de crianças morrem todo ano por causas ligadas à pobreza. “São 19 mil mortes por dia. Imagine se estivessem todas juntas, num estádio de futebol. Seria uma imensa tragédia, com ampla repercussão na mídia, e todos se mobilizariam. Mas não é uma história nova. Essas crianças estão espalhadas por vários países e morrem por doenças banais como pneumonia, diarreia e malária.”
Singer não deixa de lado a classe afluente, composta por pessoas que, depois de suprirem todas as necessidades familiares e de assegurarem poupança para o futuro, têm dinheiro para gastar além do que precisam em casas novas, carros de luxo, férias e roupas desnecessárias. “São pessoas que poucas vezes pensam que poderiam ajudar a eliminar parte da pobreza sem sacrifi car qualquer coisa de importância moral comparável. O problema é que elas não acham que é sua responsabilidade ajudar.”
O que impede a maioria de se mobilizar e ajudar? “Será a falta de visibilidade que isso traz? O sentimento de futilidade? A dispersão da responsabilidade?”, especula. “Ninguém está pedindo que você seja um santo, que venda suas coisas ou que se prive de prazeres. Mas há organizações de ajuda confiáveis, que são foto: © Folhapress eficazes e honestas, para as quais sua contribuição faz diferença.”
Para incentivar a ajuda, Singer criou o site The Life You Can Save (A Vida que Podemos Salvar), que calcula um donativo razoável e oferece uma lista de associações que o merecem. No livro Quanto Custa Salvar uma Vida (Editora Gradiva, 2011), o filósofo propôs que todos os trabalhadores sejam obrigados a entregar pelos menos 10% do seu rendimento para resolver o problema da pobreza.
A redução do consumismo está incluída nas propostas para mudar o nosso modo de vida e a maneira de produzir energia. “Ninguém é proprietário da atmosfera. Cuidar dela para evitar consequências desastrosasé uma questão ética e moral.” Singer convoca todos à participação ao lembrar que os gases estufa são consequência da energia barata, de muitas viagens e de uma dieta à base de carne. “No futuro, teremos refugiados da mudança climática, que vão ter de deixar sua região para não morrer. Só que a maioria das áreas do planeta vai se tornar inabitável.”
Ao fundamentar sua defesa dos direitos dos animais, o filósofo chama a atenção para o “especismo” – a atitude arrogante de nossa espécie diante das outras. “O especismo tem paralelo com o racismo. Não foi nossa atitude racista que justificou a escravidão ou o massacre dos índios nos Estados Unidos, na Austrália ou no Brasil? Hoje é hora de ser contra o especismo.”
Singer é o primeiro a reconhecer que a premissa de tratar bem os animais e evitar a crueldade esbarra em interesses econômicos. Há também problemas filosóficos, uma vez que os animais não têm uma consciência comparável à humana. Mas, mesmo assim, prossegue com o questionamento. “Por que não devemos ter consideração pelos interesses de outras espécies? Se todos sofrem, qual a diferença entre um homem, um chimpanzé, um gato ou um cachorro?”
É por isso que comemora a criação em laboratório do primeiro hambúrguer feito a partir de células-tronco de gado. “Seria muito bom se um hambúrguer artificial chegasse à nossa mesa sem causar o sofrimento de nenhum animal”, diz o militante vegano. Fiel aos princípios, sempre que pode, sugere que todos eliminem a carne da dieta. “Há inúmeras proteínas que podem substituí-la. No fundo, somos carnívoros por uma questão cultural que reflete uma preferência alimentar adquirida e consolidada ao longo do tempo.
” Se na apresentação paulistana houve quem o considerasse radical demais, os aplausos abafaram as críticas. Para apaziguar os ânimos, Singer tentou desfazer a impressão de que poderia estar exagerando. “Não estou sendo profeta do apocalipse. Não acho provável que nossa espécie seja extinta no século XXI, mas isso pode acontecer. Então, é importante que todos saibam que só nós podemos evitar a extinção humana.”
Um dia após a palestra, o filósofo visitou os 200 mamíferos do Santuário de Grandes Primatas e Felinos de Sorocaba, filiado ao Great Ape Project, grupo que ajudou a fundar nos anos 1990, com o apoio de antropólogos, zoólogos e dvogados. Foi acompanhado por cerca de 30 pessoas, entre elas o ex-deputado federal Fernando Gabeira.
Sorocaba está a 32 quilômetros de São Roque, onde, em 18 de outubro, o Instituto Royal, que realiza pesquisa com fármacos, foi invadido por ativistas que o acusam de realizar testes científicos cruéis em animais.