Temos enfrentado uma crescente onda de cansaço extremo entre trabalhadores. Nesse Brasil, diverso, desigual e complexo, parece que encontramos um ponto em comum: estamos todos exaustos.Setembro de 2024 começou com um sinal amarelo: uma lembrança sobre a urgência, cada vez mais aguda, em falar sobre e também tratar de “peito aberto” as questões relativas à saúde mental. Deste modo, eu havia pensado num artigo que ponderasse a correlação entre saúde mental e questão racial – na tentativa de lembrar que nem mesmo a loucura esteve imune ao racismo, tanto hoje como em tempos pretéritos.

Só que a exaustão deu uma bela rasteira e se impôs sobre minhas considerações sobre raça e loucura, lembrando o quão vasta é a nossa saúde mental. Uma exaustão que num primeiro momento parecia dizer respeito a mim e à minha dificuldade em equalizar a sobrecarga de trabalho. Mas quando consegui parar e entender de forma mais sistemática, a verdade saltou na minha cara.

A exaustão é uma questão alarmante no Brasil de 2024. Temos enfrentado uma crescente onda de cansaço extremo entre trabalhadores. A síndrome de burnout atingiu níveis alarmantes, inclusive (e talvez sobretudo) entre profissionais de alta demanda. Cansaço físico e mental extremo, perda de interesse no trabalho, insônia, tensão muscular, dificuldades de concentração e uma sensação de fracasso constante.

Confesso que esses sintomas têm sido os temas mais frequentes em conversas com amigos e colegas de trabalho. E nesse Brasil, diverso, desigual e complexo, parece que encontramos um ponto em comum: estamos todos exaustos.

Claro que devemos pontuar que, embora estejamos em fadiga extrema, o cansaço não é exatamente o mesmo, nem tem a mesma intensidade. E, por isso mesmo, não podemos abrir mão da interseccionalidade como ferramenta analítica. Num recorte de classe, a precarização generalizada da classe trabalhadora é ainda mais profunda nas áreas notadamente reconhecidas como “menos qualificadas” e dentre a população mais pobre.

Já num recorte de gênero, a exaustão é duplamente grave no caso de nós, mulheres, que enfrentamos ainda mais sobrecarga mental e física, principalmente em razão do acúmulo das responsabilidades profissionais e domésticas. Afinal, em sociedades patriarcais como o Brasil, o cuidado é uma atividade quase que exclusiva do universo feminino, já que mulheres gastam quase o dobro do tempo nessas atividades do que os homens.

Dimensão racial da exaustão

E, por fim, mas não menos importante, está a dimensão racial da exaustão. A discriminação é um fato social total para todas as pessoas negras que trabalham. Negros ocupam predominantemente posições de menor prestígio e remuneração – assim como são maioria no setor de serviços e na informalidade. Também é comprovado que trabalhadores negros recebem salários menores do que brancos que ocupam as mesmas funções.

Muitas vezes, essa discriminação é semi-velada nas piadas racistas (à brasileira) dos corredores ou numa sugestão de que um cabelo alisado trará um ar mais profissional, afetando diretamente “o psicológico” dos trabalhadores negros, que, além da classe e do gênero, precisam colocar o racismo na balança.

Então, sim: temos cansaço ao gosto do freguês. E esse é também um problema central: a mercantilização da exaustão.

Mundo virtual

Nunca antes na história desse país (e do mundo), tivemos tanto acesso à informação. Uma enxurrada que deixa nossas sinapses no chinelo, mesmo porque, além do volume colossal e da urgência de estarmos sempre “atualizados”, ainda temos que nos preocupar em separar as informações que são válidas e comprovadas das fake news, que estão cotidianamente disputando a ideia de verdade e distorcendo o que é a realidade.

Essas informações sem fim são veiculadas pelas redes sociais, que, além de não distinguirem o que é fato e o que é fake, criam dinâmicas perversas de mundos virtuais. Além de nos entupirem de informação de todo o tipo de qualidade, esses espaços também nos obrigam a viver num mundo em que possamos manejar os sentidos de felicidade (sem que sejamos necessariamente felizes), contanto que o eu de cada um não saia dos holofotes.

Essa individualização extrema da experiência humana é também um motivo de exaustão.

Assim, mais do que um estado ou um momento, a exaustão se tornou um estilo de vida. Falamos dela o tempo todo, compramos todo tipo de remédio para tentar dormir melhor, mas também para nos concentrarmos e produzirmos mais. E, assim, para ganharmos mais dinheiro e podermos finalmente descansar (o que quase nunca acontece). Lemos livros sobre ansiedade e, no fundo, ficamos felizes de nos reconhecermos neles; pagamos e fazemos cursos para desestressar, sem nos desconectar… Assim vamos alimentando esse monstro que nós mesmos criamos. Nos transformamos na própria exaustão e não estamos conseguindo sair dela.

Talvez uma saída para desconstruir esse estilo de vida seja justamente mudar o foco, e sair da lógica “self” de ser.

Hoje, quando ia de carro para a universidade em que dou aula, peguei um trânsito chato e inesperado. Como eu estava com pressa para chegar, me juntei ao buzinaço na boca do túnel engarrafado. E qual não foi minha surpresa ao descobrir que um motoqueiro de aplicativo estava “interditando” uma pista inteira para escoltar um homem em situação de rua e extremamente pobre que decidiu atravessar um dos túneis mais importantes da cidade, com seu carrinho de supermercado e seu cachorro. E aquele homem, que muitos poderiam chamar de louco, atravessou o túnel no tempo que precisou. Tivemos todos que parar. Tivemos todos que esperar. Ainda bem.

______________________________

Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.