29/08/2023 - 17:25
No fim de 2019, um diretório local da Associação Nacional dos Antigos Combatentes e Amigos da Resistência (ANACR), em grupo francês que preserva a memória da luta contra a ocupação nazista na Segunda Guerra Mundial, estava caminhando para o encerramento da sua assembleia geral, que reunia principalmente aficionados por história e familiares de antigos combatentes falecidos.
Era uma reunião de rotina na região rural de Corrèze, um departamento no centro da França famoso pela oposição feroz aos invasores alemães durante o conflito. Tudo se encaminhava de forma previsível, quando, súbito, o presidente honorário do diretório Edmond Réveil – o último combatente da Resistência ainda vivo do departamento – anunciou que tinha algo para partilhar.
Hoje com 98 anos e morador bastante conhecido do vilarejo de Meymac, Réveil contou ter testemunhado a execução sumária de dezenas de prisioneiros alemães por seus companheiros da Resistência, no penúltimo ano da guerra.
As palavras da boca do quase centenário caíram como uma bomba entre a plateia, rompendo um segredo de mais de sete décadas. Alguns temeram imediatamente que a revelação minasse o orgulhoso mito local, se não nacional, do heroísmo durante o conflito.
Desde então, Réveil tem falado abertamente sobre seu remorso, apesar das circunstâncias complexas da época. “Não deveríamos tê-los matado”, comentou em junho ao jornal regional La Montagne.
De acordo com o francês, em 12 de junho de 1944, na turbulência sangrenta que se seguiu aos desembarques aliados do Dia D no norte da França, cerca de 30 combatentes dos Francs-Tireurs Partisans (FTP) – um grupo de resistência ligado aos comunistas – executaram 46 prisioneiros alemães e uma francesa acusada de colaboração. Os corpos foram enterrados numa floresta perto de Meymac.
Nenhum resto humano encontrado até agora
Sua admissão, registrada num depoimento oral em 2020, acabaria por desencadear uma escavação franco-alemã, com uma equipe de 20 participantes. Os esforços foram acompanhados por uma onda de interesse midiático na França e em outros países.
A busca por essa vala comum, que foi significativamente atrasada pela pandemia, foi concluída na quinta-feira sem que nenhum resto humano fosse de fato encontrado.
Por enquanto não estão previstas mais escavações, mas segundo o prefeito de Meymac, Philippe Brugère, as buscas devem prosseguir. Onze corpos foram encontrados na mesma região durante uma escavação realizada no fim da década de 1960 sob circunstâncias misteriosas, e cujos detalhes estão estranhamente ausentes dos registros públicos.
Brugère testemunhou em primeira mão a admissão de Réveil em 2019: “Eu próprio não sabia como reagir, de início.” Executar prisioneiros de guerra é em geral considerado um crime de guerra, mas o fato de os FTP serem guerrilheiros e não um exército convencional torna as coisas mais complicadas, sublinhou o prefeito.
“Dava para sentir o cheiro de sangue”
Neste caso, o contexto pesa bastante. Como Réveil explicou no depoimento de 2020, o FTP tinha feito prisioneiros durante uma operação de guerrilha contra a ocupação na cidade vizinha de Tulle, mas não tinha planos para o que viria a seguir. “Não queríamos matá-los, mas não podíamos ficar com eles.”
Os guerrilheiros não podiam alimentá-los nem abrigá-los, e ainda corriam o risco de ser executados, caso capturados. O risco de represálias alemãs sobre o vilarejo de Meymac também era muito real. Dias antes, as forças ocupadoras em Tulle tinham enforcado 99 habitantes como punição pela ofensiva dos membros da FTP. No mesmo período, os nazistas também haviam massacrado 643 civis, entre os quais 247 crianças, na cidade de Oradour-sur-Glane, a cerca de 100 quilômetros de Meymac. Muitos foram queimados vivos no interior de uma igreja.
“A gente tinha que encontrar uma solução”, diz Réveil. Depois de manterem os alemães em cativeiro por vários dias, finalmente veio uma ordem para executá-los.
O hoje quase centenário se recusou a participar da matança, e conta que o comandante local “chorou como uma criança”. Depois de serem forçados a cavar as próprias covas, os prisioneiros foram fuzilados e enterrados na floresta perto de Meymac.
“Estava muito quente… Dava para sentir o cheiro de sangue”, lembra Réveil. Em seguida os algozes foram obrigados a jurar segredo: “Todo mundo sabia, mas ninguém falava sobre o assunto.”
Para o prefeito Brugère, a confissão foi um ato de coragem, bem como uma oportunidade de desabafo para um homem próximo do fim da vida: “Acho que foi importante para ele a coisa não cair no esquecimento.”
Brugère ressalva, porém, que nem todos da comunidade encararam a iniciativa de forma tão positiva, considerados os horrores sofridos sob a ocupação nazista. “Ainda há alguns – uma pequena minoria – em Meymac, por exemplo, e em outros lugares, que acham difícil entender por que estamos investigando.”
“Terra da Resistência”
Após a invasão e ocupação da França pelos nazistas em 1940, boa parte da população se dividiu entre quem apoiava a Resistência, liderada pelo general Charles de Gaulle e grupos como o FTP, e quem era a favor do regime colaboracionista do marechal Philippe Pétain.
Todo esse período da história da França ainda é objeto de debate. Depois da guerra, a narrativa oficial do governo De Gaulle foi que a maioria da França se alinhara com a Resistência. A grande região de Limousin, onde fica o departamento Corrèze, é “uma terra da Resistência, é conhecida por isso”, afirma Brugère. “Os alemães a apelidaram de ‘Pequena Rússia’.”
Essa herança é motivo de orgulho na região. Quando o testemunho de Réveil começou a ganhar cobertura na imprensa local e nacional, o diretório da ANACR em Corrèze classificou vários artigos como incendiários e imprecisos.
“Não temos o direito de bancar o juiz”, escreveu a associação num comunicado à imprensa em maio. “É preciso que nos questionemos o que teríamos feito, de que lado estaríamos? No campo da Resistência ou na desonra da colaboração com os nazistas?”
Dois residentes de Meymac manifestaram ressalvas semelhantes. “Quem não conhece a história de tudo o que aconteceu aqui na nossa região poderia logo dizer ‘Oh, os resistentes eram uns bastardos’”, disse Jeanne, de 69 anos.
“Estou um pouco chateado com isso tudo”, acrescentou Marc, de 70 anos. “Todo mundo sabe de tudo isso há muito tempo. E se não falaram sobre isso, é porque juraram segredo.” Ambos os entrevistados se recusaram a revelar seus sobrenomes à DW.
Uma tragédia, mas uma fonte de esperança
O próprio Réveil não se incomoda que alguns prefiram deixar o passado para trás, afirma seu amigo e vizinho Joel Bezanger, de 58 anos. Embora sua geração não nutra animosidade contra o povo alemão, “definitivamente crescemos com a lenda dos bons combatentes da Resistência e dos maus alemães”.
Por isso que o testemunho de Réveil é tão importante, frisa o dentista nascido em Tulle: “Não se precisa acreditar que havia os mocinhos de um lado e os bandidos do outro. A guerra não é assim. Há muitos bandidos, ou pelo menos exacerbação da violência. Reconhecer tal nuance não prejudica o legado da Resistência.”
Para os supostos executados em junho de 1944, o fato de uma equipe de reunindo especialistas alemães e franceses trabalhar para recuperar os seus restos mortais provavelmente seria surpreendente.
Para o prefeito Philippe Brugère, trata-se de mais um indicativo que sempre há possibilidade de reconciliação: “É um paradoxo: é um acontecimento trágico que ainda nos dá muita esperança.”