Na Inglaterra, sinal verde do governo para a produção de embriões feitos com material genético humano e de animais. Servirão para se obter células-tronco necessárias à cura de doençasNa mitologia grega, a quimera era um ser monstruoso, com cabeça de leão, corpo de cabra e rabo de dragão. No mundo também fantástico da engenharia genética, usa-se o mesmo termo – quimera – para indicar um indivíduo composto de diversos genomas. Um ser cujo DNA possui seqüências provenientes de mais de uma espécie.

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Em Londres, dia 5 de setembro, a quimera genética se tornou realidade. Depois de muita polêmica, discussões e inclusive uma consulta à população, as autoridades inglesas autorizaram a criação de embriões híbridos humano-animais para utilização científica na busca da cura de diversas doenças. Em princípio, os seres que nascerão dessas experiências terão pouco ou nada a ver com a quimera mitológica.

Mais de 60% dos ingleses se declararam A FAVOR das EXPERIÊNCIAS realizadas com embriões HÍBRIDOS

Ian Wilmut, o “pai” de Dolly, a primeira ovelha clonada.

Cientistas de dois supercentros britânicos especializados em pesquisa de engenharia genética – o King’s College de Londres e a Universidade de Newcastle – se limitarão a produzir “embriões híbridos” removendo o núcleo do óvulo de uma coelha ou de uma vaca e substituindo-o com o núcleo de uma célula humana. Entre esses pesquisadores está Ian Wilmut, o “pai” de Dolly, a primeira ovelha clonada.

O resultado será um embrião com 99% dos genes tomados do doador humano e apenas 1% do animal. Mas, para seus opositores – sobretudo para as autoridades católicas -, o significado da experiência não se altera: trata-se de “algo absurdo, inútil, utópico”, que se torna realidade. Um conúbio sacrílego e imoral entre o homem e a besta.

Uma idéia que lembra a criação de horrendos Frankensteins surgidos em provetas de laboratórios. A abertura de uma porta que conduzirá a alucinantes experiências contra a natureza.

A fala do Vaticano, expressa pela voz de monsenhor Elio Sgreccia – presidente da Academia Pontifícia para a Vida – no próprio dia em que a notícia foi lançada, não deixa margem a dúvidas: “Trata-se de um ato monstruoso contra a dignidade humana, uma rendição do governo britânico às pressões de um grupo de cientistas que vai certamente contra a moral.” Mas 61% dos ingleses consultados em pesquisa pela Authority se declararam a favor dessas experiências com embriões híbridos, considerando que seu potencial positivo é maior que o negativo.

Como a ciência faz uma quimera? Há vários processos. Um modo relativamente simples, hoje muito usado no campo farmacêutico, consiste em inserir numa bactéria um ou mais genes provenientes de um outro organismo, permitindo àquela bactéria produzir determinadas substâncias úteis para o ser humano. A insulina, por exemplo, necessária para o tratamento da diabete, até há poucas décadas era extraída do pâncreas de vacas, cavalos ou porcos.

Hoje em dia, ela é produzida por bactérias modificadas em laboratório, inserindo-se nelas o gene que contém os códigos para a produção de insulina humana.

Na Inglaterra, sinal verde do governo para a

produção de embriões feitos com material

genético humano e de animais. Servirão para se

obter células-tronco necessárias à cura de doenças

Com procedimentos mais complexos, inserindo-se genes humanos no genoma de animais de laboratório, como porquinhos-da-índia, coelhos, ovelhas, cabras e porcos, é possível se produzir proteínas humanas (como o hormônio do crescimento) com finalidades terapêuticas, poe meio do leite ou do soro sangüíneo, da urina ou do esperma do animal doador.

Num nível mais simples, nos anos 60 foi largamente usado na Inglaterra um teste de fertilidade masculina que consistia na fecundação de células-óvulo de hamsteres com espermatozóides humanos: o teste era interrompido quando o zigoto (a célula resultante da fusão) começava a se reproduzir.

DÚVIDAS permanecem a respeito do valor dessa SOLUÇÃO, mas elas não poderão ser resolvidas sem a devida EXPERIMENTAÇÃO

Num extremo oposto em termos de complexidade, é possível fundir não os gametas (as células reprodutivas), mas sim os zigotos de indivíduos pertencentes a espécies diferentes. Foi dessa maneira que, em 1984, foi produzida uma “cabrovelha” que combinava os embriões de uma cabra e de uma ovelha. Com técnicas análogas, espera-se no futuro poder salvar algumas espécies da extinção.

Em 2003, CIENTISTAS chineses anunciaram ter conseguido produzir, em Xangai, híbridos de células humanas e de coelho. Isso foi feito inserindo- se o núcleo de células somáticas humanas no interior de células-óvulo de coelha destituídas de seu próprio núcleo, e deixando que a célula resultante se desenvolvesse até o estágio de blastócito (um dos primeiros estágios do desenvolvimento embrionário), ou seja, até a formação de um aglomerado de células que seriam depois utilizadas para a pesquisa das células-tronco.

Além de ser condenada pelo bom senso, a produção de embriões que representem um híbrido real entre o homem e um animal é universalmente proibida pelas leis – nos países onde já existem leis a respeito. Mas, de outro lado, a pesquisa médica hoje precisa trabalhar com células-tronco, que são aquelas encontradas nos embriões que ainda estão em seus primeiríssimos estágios de desenvolvimento.

O potencial dessas células é imenso, já que elas são capazes de gerar tecidos e órgãos vitais. Dessa novíssima fronteira da pesquisa científica poderá surgir não apenas uma nova compreensão sobre o modo como pode nascer um organismo inteiro a partir de uma única célula, mas também várias outras vantagens para a medicina.

A possibilidade, por exemplo, de reconstruir em laboratório tecidos danificados, ou de fazer crescer órgãos inteiros no corpo de um animal hospedeiro ou de compreender os mecanismos de doenças degenerativas que impedem um funcionamento correto das células, de modo a se criar fármacos capazes de combatê-las.

Mas, para se alcançar tudo isso, será mesmo necessário criar embriões humanos transgênicos, embriões-quimera que poderão, pelo menos em teoria, dar origem a toda uma geração de monstruosos seres híbridos? A pergunta é cabível, já que, na Inglaterra, os primeiros passos nesse sentido já foram dados com o apoio das agências oficiais de controle.

A aprovação da HFEA – Human Fertilization and Embriology Authority (http://www.hfea.gov.uk) para esse tipo de pesquisa é bem precisa e reflete, de certo modo, as preocupações morais dos cientistas. Ela autoriza apenas a produção de linhas celulares que utilizam o núcleo de uma célula somática humana e uma célula-óvulo bovina ou de outro animal privada do próprio núcleo.

A célula resultante é ativada com estímulos elétricos para que inicie o processo de reprodução. Das linhas celulares que ela gerará serão obtidas as várias células que serão utilizadas com fins de pesquisa científica. Com esse método, seria praticamente impossível obter-se um embrião que dê origem a um indivíduo (neste caso, uma espécie de minotauro), porque as células assim obtidas não têm o potencial para fazê-lo. Mas, no futuro, com o desenvolvimento dessa tecnologia, quem sabe?

Dúvidas permanecem a respeito do valor real dessa solução, mas, como afirma a maioria dos cientistas que opinaram a respeito, elas não poderão ser resolvidas sem a devida experimentação. Entre os objetivos principais está o da descoberta de novos métodos para a produção de células-tronco diretamente a partir de células somáticas, sem a necessidade de se recorrer a óvulos ou a embriões humanos.

E, como um outro objetivo de igual importância, o desenvolvimento de modelos de doenças degenerativas da célula, como os distúrbios motores de origem neuronal, diabete, Mal de Parkinson, Alzheimer, bem como a criação de terapias que permitam o seu tratamento. A fábrica de quimeras, portanto, está aberta. Sua língua oficial é o inglês.