02/08/2021 - 12:28
Promovido por Bolsonaro e por médicos Brasil afora, o “kit covid”, assim como a postura do CFM, foi alvo de críticas de grande parte da classe médica. Profissionais debatem ética e falam em crime contra a população.Os efeitos do negacionismo no Brasil durante a pandemia de covid-19, capitaneado pelo presidente Jair Bolsonaro, ainda estão sob o escrutínio jurídico e político no país. Mas um drama abate a classe médica brasileira: como explicar, ao longo de tantos meses, a omissão e a conivência do Conselho Federal de Medicina (CFM) em relação ao chamado “kit covid” ou tratamento precoce, que mesmo sem nenhuma evidência científica sobre sua eficácia se transformou em política pública no Brasil, destoando do resto do mundo?
Os médicos que propagandearam o tratamento precoce, possivelmente com interesses comerciais na venda de cloroquina e hidroxicloroquina, por exemplo, terão seus registros profissionais cassados? Haverá responsabilização por mortes que poderiam ter sido evitadas?
Sociedades brasileiras de especialidades médicas, em especial as de infectologia e pneumologia, travaram ao longo do último ano e meio uma batalha incansável na categoria contra o tratamento precoce no Brasil, o que gerou desgaste psicológico e político para boa parte de seus dirigentes e profissionais. A postura de parte da classe médica, adesista ao bolsonarismo, acendeu nos bastidores um debate não apenas sobre a ética médica, mas sobretudo sobre as lacunas de uma formação humanística desses profissionais no país.
Na França, o médico Didier Raoult, conhecido como o “guru da cloroquina” no mundo, tem hoje em seu encalço a polícia francesa – que investiga o Institut Hospitalier Universitaire Méditerranée Infection, hospital que o médico dirige – e também o Conselho da Ordem dos Médicos da França, com sério risco de perder o registro profissional.
No Brasil, somente em maio deste ano uma comissão técnica do Ministério da Saúde admitiu, em documento interno sobre protocolos de tratamento da covid-19, que “não há evidência de benefício” da cloroquina, “seja no seu uso de forma isolada ou em associação com outros medicamentos”.
Há poucas semanas, com o governo federal sob forte pressão política da CPI da Pandemia, a pasta enviou um documento aos senadores da comissão informando que não recomenda o uso de cloroquina, azitromicina e ivermectina, drogas propagandeadas no chamado “kit covid”.
A despeito dos passos tardios do Ministério da Saúde em reencontro à ciência, Bolsonaro não apenas segue desprezando protocolos sanitários como insiste no tratamento precoce – além de, agora, invocar uma nova droga milagrosa: a proxalutamida.
Nova presidência da Associação Médica Brasileira mudou o clima
A mudança mais contundente no meio médico ao longo da pandemia ocorreu em janeiro deste ano, quando uma nova diretoria tomou posse na Associação Brasileira de Medicina (AMB). A chapa “Nova AMB” chegou ao poder e, logo em seguida, adotou um posicionamento muito claro contra o tratamento precoce.
Assim que tomou posse, o novo presidente da AMB, o médico César Eduardo Fernandes, professor titular de ginecologia da Faculdade de Medicina do ABC (FMABC), criou o Comitê Extraordinário de Monitoramento Covid-19, com participação de 12 sociedades de especialidades médicas.
“Começamos a emitir posições em boletins periódicos. E um dos primeiros boletins emitidos foi justamente para não validar o que se convencionou chamar de tratamento precoce da covid-19, com base em medicações que não tinham comprovação científica de eficácia e, que ao contrário, tinham evidências de que podiam ter efeitos danosos ao organismo. Não só elas não resolviam o problema como podiam trazer malefícios aos usuários”, afirmou o presidente da AMB, em entrevista à DW Brasil.
“Emitimos essa posição clara, que na época [março de 2021] contrastava com a posição que o governo brasileiro tomava, mas nós não quisemos rechear isso de um significado político, partidário ou ideológico. É posição dos médicos do Brasil, a partir da Associação Médica Brasileira. Claro que foram emprestadas leituras ideológicas ou partidárias, embora isso não tenha sido a razão do nosso movimento. Isso polarizou as opiniões, inclusive de médicos. Parece até um certo comportamento de seita mesmo, de pessoas que seguem cegamente uma linha como se fosse algo que merecesse esse tipo de comportamento. A nossa avaliação é sempre de cunho científico e até hoje mantemos a mesma posição que foi adotada lá no início de nosso mandato”, enfatizou Fernandes.
Questionado sobre as razões que levaram o Brasil a adotar o tratamento precoce, sendo que praticamente nenhum país do mundo incorporou a medida como política pública, o presidente da AMB admite: “Tenho dificuldade para entender os porquês. Claro que temos o nosso presidente, que advoga esse tratamento. E como ele não é médico, suponho que ele tenha sido convencido por médicos de sua confiança de que esse tratamento possa ser eficaz. Imagino, e não tenho como comprovar, que ele recebe influências de médicos. E pelo perfil de atuação do presidente, que fala com ênfase e convicção, ele consegue influenciar a população. Os médicos e a população ficam confusos.”
“Há um ano não faz sentido insistir nessa linha”
Segundo o presidente da AMB, no início da pandemia, em 2020, ainda fazia sentido “testar inúmeras medicações que pudessem ter alguma plausibilidade de que fossem eficazes”. “Mas nos dias atuais, e já de muito tempo, há aproximadamente um ano, não faz o menor sentido insistir nessa linha. Porém, a fala do presidente se mantém do mesmo modo. Esse é um motor que sustenta essas opiniões e divide opiniões mesmo de médicos que deveriam ter equidistância de quaisquer paixões políticas ou partidárias para arbitrar essa questão”, acrescenta o presidente da AMB.
Ainda que haja clareza, pela ciência, da ineficácia dos medicamentos, o Conselho Federal de Medicina segue omisso no tema. A DW Brasil solicitou uma entrevista com o presidente do CFM ou algum membro da diretoria do órgão para elucidar a postura da entidade em relação ao tratamento precoce.
Em nota, o CFM reconheceu que “até o momento não há estudos científicos, com metodologia inconteste, que comprovem o efeito de medicamentos na fase inicial da covid-19, antes da manifestação de sintomas graves da doença”. “Diante disso, o CFM, por meio de seu parecer 04/2020, entende que o médico na ponta e o paciente, mediante Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, têm autonomia, de forma conjunta, para decidirem qual a melhor opção terapêutica para tratar os casos diagnosticados.”
O Conselho Federal de Medicina alega que a “autonomia do médico e do paciente são garantias constitucionais, invioláveis”. A entidade informou, ainda, que acompanha “os resultados de inúmeros estudos sobre o tema conduzidos ao redor do mundo”. “Contudo, até o momento, entende que não há evidências fortes o suficiente, ou seja, reconhecidas por sua alta evidência científica, justificando a mudança do Parecer 04/2020. Caso, essas conclusões sejam obtidas, o tema poderá passar por nova análise”, diz a nota.
Para o presidente da AMB, o tratamento precoce é igual à jabuticaba, “só dá no Brasil”. “No mundo inteiro a autonomia do médico é baseada nas boas práticas clínicas. Expor ao paciente prós e contras, em decisões compartilhadas. Somos totalmente a favor da autonomia, mas não entendemos que a autonomia dê guarida a usar alternativas terapêuticas que não são eficazes”, rebate César Fernandes. Segundo ele, os médicos brasileiros devem “obediência ao arcabouço normativo e regulamentar do CFM”, mas podem pensar diferente.
“Nós pensamos diferente. Nosso entendimento é de que a autonomia do médico deve existir e deve ser pautada nas boas evidências científicas. A autonomia não dá direito ou liberdade ao médico para fazer um tratamento que se mostra ineficaz. Essa me parece uma coisa que só dá no Brasil, igual jabuticaba. Estamos isolados do resto do mundo.”
“Claramente é crime fomentar o uso desta medicação”
Porta-voz nacional da direção da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e presidente da entidade no Distrito Federal, o médico José David Urbaez Brito afirma que a grande maioria da classe médica discorda da postura do Conselho Federal de Medicina.
“Claramente é crime fomentar o uso de uma medicação que não tem benefício e que expõe as pessoas à falsa segurança para morrerem. É um vírus letal”, opina.
Em março de 2020, conta o infectologista, a SBI e outras sociedades médicas foram chamadas pelo então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, para discutir protocolos de tratamento da covid-19. “Mas naquela reunião já ficou claro que não tinha plausibilidade [o uso de cloroquina]. Era antimalárico e existia muito pouca possibilidade de que funcionasse.” A cloroquina, explica o especialista, já havia sido testada em outras situações, contra o zika, ebola, HIV, por ter um comportamento “in vitro” capaz de combater vírus, mas “in vivo” o medicamento não mostrou eficácia.
A história da cloroquina teria morrido ali mesmo, na sala de reuniões do ministério, diz Urbaez Brito, não fosse o exército negacionista e ideológico ter mostrado suas armas semanas depois. “Mal sabíamos que seríamos absolutamente bombardeados e consumidos por uma onda negacionista maldosa, ideológica. Ali começou o estímulo ao uso da cloroquina, a partir do governo federal, fundamentalmente a partir da voz do presidente e de vários de seus colaboradores”, pontua o presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia do Distrito Federal.
O exército insuflado por Bolsonaro é poderoso, reconhece, e provocou muitos desgastes à classe médica. A própria SBI passou a ser atacada, e seu saber científico foi desprezado. Para diluir a pressão nas redes sociais, a entidade optou por nomear porta-vozes em vários lugares do país.
Em abril de 2020, recorda o médico Urbaez Brito, formou-se uma situação nacional de confronto com o governo federal, e a SBI posicionou-se contra o tratamento precoce. “Desde aquela época a SBI tinha se posicionado contra esses medicamentos porque não tinha nenhum tipo de base biológica, plausibilidade e muito menos evidências para ser usado neste tipo de tratamento. Fomos atropelados numa situação sem precedentes. Fomos desautorizados. Consultados, menos ainda. Tudo o que a gente falava teve e tem ainda campanha de descrédito. Quando a pandemia se instalou com muita intensidade, nós perdemos completamente a batalha. Começaram a ter médicos de outras especialidades, como otorrino, oftalmo, endócrino, as coisas mais esdrúxulas [a favor do 'kit covid']. Eles fizeram um exército”, lamenta o porta-voz da SBI.
A SBI, conta o médico, passou por momentos de intimidação explícita, como a intimação do Ministério Público de Goiás para que explicasse seus posicionamentos. Para Urbaez Brito, o que ocorreu no Brasil foi “a tradução de um sistema de formação médica absolutamente fragmentado, atravessado pelo mercantilismo”, além de refletir o viés elitista da profissão – “de onde vêm os nossos médicos?”, questiona. “Perdeu-se a visão ética no paradigma médico. E isso destruiu o alicerce de exercer a medicina com o norte da melhor evidência, com o benefício total do paciente. Ficamos com indivíduos que são bons técnicos, mas bons técnicos não têm capacidade de, numa hora dessa, se posicionar corretamente.”
Apesar de defender a punição de médicos que agiram a favor do tratamento precoce, o presidente da SBI no Distrito Federal não crê que haverá qualquer movimentação do CFM neste sentido. “Em suma: enquanto Bolsonaro estiver como presidente, não vejo nenhuma possibilidade. Ao menos que isso chegue judicialmente, pelo Ministério Público.” O uso do “kit covid”, na opinião de Urbaez Brito, contribuiu para a explosão de casos e óbitos no Brasil: “Empurrou uma população a se expor, incitou, dando uma poção mágica sabidamente sem evidência. E isso é crime.”
“A categoria médica vai pagar um preço muito alto”
Professor da Faculdade de Medicina da UFMG, o infectologista Unaí Tupinambá, membro e um dos criadores da Associação de Médicos pela Democracia, conduziu um estudo, em parceria com a Fiocruz em Belo Horizonte, “de profilaxia com cloroquina com profissionais da saúde”. Era o único estudo bem estruturado e com financiamento público no país, iniciado em março de 2020.
“Em junho nós já abortamos o estudo. Não tinha razão de continuar. Devolvemos o dinheiro para os financiadores, fizemos relatório. Os outros estudos que começaram a aparecer [fora do Brasil] mostravam que não tinha eficácia. Não teria sentido expor trabalhadores de saúde àquele medicamento. A hidroxicloroquina não salva ninguém e pode até levar para o caixão mais rápido”, diz.
Para ele, a categoria médica será cobrada, no futuro, por sua postura no Brasil. “Jogamos o método científico no lixo, tiramos nossa máscara, vimos o quanto somos mal formados. Temos que repensar o currículo da medicina, que não é centrado no paciente, mas na tecnologia. Esse médico sai da escola vulnerável e vira presa fácil para medidas miraculosas, como esse kit-covid.” O episódio brasileiro, diz o titular da UFMG, revela que há três tipos de médicos: “O mal formado, o oportunista e o médico cínico. Esses três perfis. Pode ser só mal formado, só cínico, só oportunista, ou os três juntos.”
O professor da UFMG admite que é “assustadora” a forma como a narrativa do tratamento precoce foi incorporada por parte da classe médica brasileira. “Estamos pagando o preço mais alto do mundo. De cada cinco mortes, quatro poderiam ser evitadas.”
A divergência com posturas do CFM, e não apenas na pandemia de covid-19, já havia motivado a criação da Associação Brasileira de Médicos e Médicas pela Democracia, diz ele, “entendendo que não estávamos representados pelos órgãos regulatórios”. A associação está em processo de se transformar em pessoa jurídica. “O CFM aderiu ao bolsonarismo. É assustadora essa postura. Espero que, no futuro, tenham que responder a isso, por apoiar um negacionista, genocida, homofóbico.”
O futuro também impõe uma reflexão da classe sobre a formação médica, que, segundo o professor da UFMG, é “muito deficiente”, sobretudo no aspecto humano. “É triste ver isso. E nós todos somos culpados, eu sou culpado, eu sou professor”, lamenta. “Mas é claro que também formamos pessoas humanas e tecnicamente qualificadas em todas as faculdades”, acrescenta. Bastante incomodado com o atual cenário e com o comportamento do CFM, o médico desabafa: “A categoria médica vai pagar um preço muito alto no futuro pela postura do negacionismo da ciência.”
“O CFM não é uma entidade que representa os médicos”
Houve mais do que omissão na defesa do tratamento precoce, reflete o médico Ricardo Heinzelmann, representante da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC). Também com mestrado em epidemiologia, Heinzelmann afirma que “infelizmente nem todas as sociedades médicas se posicionaram para alertar a população” contra o tratamento precoce.
“Houve uma ação do governo federal que aprofundou o número de mortes. O governo escolheu seguir orientando [a favor do] tratamento precoce. Mesmo sabendo que a vacina era o grande caminho para a reabertura do país e para evitar milhares de mortes, escolheu não fazer a compra no momento oportuno e não ampliou o financiamento do SUS na hora em que mais precisava. Por tudo isso podemos dizer que foi ação deliberada por parte do governo federal”, critica.
O médico enfatiza que o “CFM não é uma entidade que representa os médicos”. “É uma autarquia federal que deve defender e zelar pelo exercício ético da medicina, e em última instância proteger a população. Nossas entidades representativas são as sociedades de especialidade e a AMB. Do ponto de vista científico, quem representa os médicos, em última instância, é a AMB.”
O fato de a AMB, recentemente, ter passado a se posicionar em sintonia com o que as sociedades científicas preconizam passou a ser um alento para boa parte dos médicos brasileiros – aqueles que juraram, como Hipócrates, aplicar tratamentos para ajudar os doentes, jamais usando-os para causar dano ou malefício.