No Dia Mundial do Acolhimento Familiar, DW ouviu voluntários que recebem temporariamente crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. País tem mais de 34 mil menores desabrigados, segundo o CNJ.”Eu descobri um sentimento novo, parece um misto de várias coisas. É saudade, é felicidade, é bonito.” É assim que Fran Lima, 31 anos, descreve sua experiência com acolhimento de crianças. A administradora está registrada no Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora (SFA) junto a outros 3.184 voluntários no Brasil. “Sempre que eu lembro desse processo, sinto saudade, mas é uma saudade gostosa de saber que aquela criança fez parte da minha vida por um período e que foi fundamental, tanto para mim quanto para ela.”

O uso do termo “família” para o serviço não segue um padrão específico, muito menos a definição do dicionário Michaelis: “Conjunto de pessoas, em geral ligadas por laços de parentesco, que vivem sob o mesmo teto”. No SFA, a palavra adquire um valor muito mais amplo e diverso. O mais importante é a vontade e capacidade de receber e ajudar as crianças e adolescentes em situação de desabrigo.

Para se tornar uma família acolhedora, é preciso passar por capacitações que variam de um a três meses, conforme o município. O processo envolve preparo emocional e compreensão de que o acolhimento é temporário: por lei, o período máximo é de 18 meses, salvo exceções autorizadas judicialmente. Ainda assim, o vínculo criado durante esse tempo é essencial. A proposta é oferecer à criança ou ao adolescente sob tutela do Estado a chance de se desenvolver em um ambiente familiar, onde possam criar laços afetivos, ser escutados e viver em comunidade.

No Dia Mundial do Acolhimento Familiar, celebrado em 31 de maio, a DW entrevistou voluntários que fazem parte do serviço de família acolhedora no país.

A beleza das pequenas coisas

Filha única que vive com os pais em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, a matemática Isabel Cristina já acolheu oito crianças em sua casa desde que se cadastrou no Serviço de Acolhimento Familiar da Secretaria de Assistência Social do município, em 2018.

Poder ajudar alguém, ainda mais de crianças e adolescentes que estão em situação de extrema vulnerabilidade, é o que motiva a família continuar no serviço.

As primeiras crianças acolhidas foram dois irmãos que “foram um furacão” na rotina da casa e o estopim para que a família se apaixonasse de vez pela política pública. Isabel se emociona ao lembrar que os dois menores nunca tinham tomado banho de chuveiro, algo que pode soar tão simples e corriqueiro. “A gente transforma a vida de uma criança e tem a nossa transformada também”, diz a jovem de 21 anos.

Isabel conta que, no primeiro aniversário de um dos meninos que abrigou, a família preparou um bolo em casa. Um gesto que eles consideravam “simples”, mas que emocionou a criança. Em meio às lágrimas, ele falou que “nunca ganhou um bolo”.

A jovem diz que se encontrou sendo família acolhedora, que sente que “essa é sua vocação”. As crianças estiveram presentes nos melhores e piores momentos dos últimos anos, desde problemas pessoais até a graduação na faculdade. Para ela, ser família acolhedora significa que “a sua história vai ser modificada para sempre”. “Você vai ser marcado, assim como você marcou aquela vida.”

A importância do cuidado individualizado

Ainda que a convivência com a criança ou adolescente seja curta, esse período é “fundamental tanto para mim quanto para ela”, reflete Fran Lima, família acolhedora desde 2024 no SFA de Sorocaba. Ela descobriu que poderia abrigar crianças após procurar um trabalho voluntário. Desde então, com o apoio de pais e amigos, já acolheu duas bebês.

Fran viveu na pele o significado do acolhimento individualizado que a política pública defende. A primeira criança de que cuidou, de apenas um ano, veio de um abrigo institucional. Fran se frustrava todas as vezes que tentava acalmar a pequena. Até que, num encontro inesperado, recebeu uma dica de ouro das ex-cuidadoras da bebê, que a reconheceram por acaso enquanto Fran esperava o atendimento no Posto de Saúde em Sorocaba: bastava cantarolar a “música da baleia” que a criança sossegava na hora. A bebê acabou adotada, e essa e outras orientações sobre os gostos da menina foram repassadas à nova família.

O segundo acolhimento foi de uma criança com cinco anos. Foi com ela que Fran resgatou a tradição de Natal que havia se perdido em sua família. A garota ajudou com as compras de decoração e Fran gravou o momento simbólico em que ela escolheu um enfeite escrito “amor”. “Esse sentimento existia ali, ela entendia que o amor também é bonito”, relembra Fran.

Ela diz que ser uma família acolhedora é ser uma “ponte”. “A gente entende que é um período em que a criança precisa de um apoio e está aprendendo muito conosco, mas nós também estamos aprendendo muito com ela”, explica. Vivenciar algumas das primeiras vezes de uma criança, como os primeiros passos ou a primeira viagem de avião, reforçam a importância do convívio familiar, ao qual se “passa a dar valor depois de acompanhar esse processo de descoberta da criança”.

Quando o amor supera o medo

“Eu tinha muito medo de bebês, não segurava recém-nascido de ninguém, dei o primeiro banho no primeiro neném que acolhi morrendo de medo porque estava sozinha”, relata Keliane Salú, família acolhedora da capital de São Paulo. A contadora de 32 anos conheceu o serviço em 2020 e vivenciou muitas das primeiras vezes dos três bebês que acolheu desde então. A vontade de ser mãe futuramente somou-se ao desejo de poder ajudar as crianças que estão nos abrigos, e fez com que ela superasse todos os seus temores.

Durante os acolhimentos, ela acompanhou de perto as primeiras tentativas de fala dos bebês e até os primeiros dentes nascendo. Participar desses momentos e poder dar atenção e afeto num momento de vulnerabilidade para essas crianças nos relembra de que elas são o “agora”, segundo Keliane. Afinal “se a gente pensar nelas como uma resposta para o amanhã, elas vão continuar vivendo essa realidade de agora com carência de afeto”.

Além disso, abrigar recém-nascidos, apesar de não ter sido a primeira opção para Keliane, é essencial para o desenvolvimento deles com um cuidado individualizado. É comum que bebês em abrigos institucionais, onde as cuidadoras dividem atenção entre 20 crianças, tenham alopecia de contato – ou seja, queda de cabelo em áreas específicas do couro cabeludo, geralmente na parte de trás da cabeça, causada pelo atrito ou pela pressão de permanecerem deitados por longos períodos na mesma posição.

Keliane precisou superar, também, o seu medo da despedida. Foi necessário um trabalho intenso para ressignificar o momento para si. “Eu sofro um pouquinho, mas entendo que faz parte”, desabafa. “Quando eu penso por que estou fazendo isso, é uma dor que vale a pena ser sentida.” O desacolhimento faz parte do processo e, no caso dos bebês que acolheu, Keliane tem sorte de manter contato com os responsáveis legais. É uma escolha da família de origem, extensa ou adotiva continuar ou não a comunicação com a família acolhedora.

“Foi algo que transformou o olhar da família inteira”

O casal Daltro Mendonça, 52 anos, e Luana Cazela, 53, apadrinhou uma das crianças que abrigou. A dupla, que tem dois filhos biológicos, é família acolhedora desde 2020 e já recebeu três menores de idade. O impacto do serviço foi tão grande que Luana até trocou de carreira. Saiu da área da gestão ambiental e hoje atua como doula de adoção, dando suporte emocional e operacional para pessoas que desejam adotar no Brasil.

“A gente queria que os nossos filhos tivessem um outro olhar e saíssem da bolha de conforto”, reflete Daltro, que é arquiteto e cenógrafo. “Foi algo que transformou o olhar da família inteira para a sociedade.”

Esse entendimento das vulnerabilidades sociais e recortes resultantes da construção histórica do Brasil traz uma dimensão ainda mais profunda do acolhimento familiar. O casal compreendeu logo cedo que “às vezes não é falta de amor, é falta do Estado e da assistência social em dar esse apoio”, explica Luana.

Apesar de a prioridade do Estado ser retornar o menor de idade à sua família de origem, “o tempo de uma família se reestruturar não é o mesmo tempo da urgência da criança”, diz Luana. Por isso, não é raro que elas sejam encaminhadas para a adoção.

No caso dos filhos biológicos do casal, Luana diz que o serviço voluntário auxiliou na formação deles enquanto cidadãos, conscientizando-os sobre a responsabilidade de viver em sociedade.

Como fica o cuidado do adolescente?

O acolhimento familiar deve ser prioridade para crianças dos 0 aos 6 anos, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Diversos SFAs atuam especificamente com essa faixa etária, tanto por conta dessa priorização quanto pelo estigma de que jovens entre 12 e 17 anos são mais desafiadores. No Brasil, Cascavel, no interior do Paraná, e Belo Horizonte, em Minas Gerais, se destacam com esse tipo de acolhimento.

Para Carlos Henrique de Oliveira Nunes, coordenador do Serviço de Acolhimento Familiar de Belo Horizonte, a idade carrega dificuldades diferentes, como o debate da sexualidade e inserção das redes sociais, mas também pode ser muito gratificante, visto que, por conta da idade, eles podem participar mais ativamente da rotina. Na capital mineira, o acolhimento de adolescentes é trabalhado desde as primeiras conversas com as famílias que se interessam pelo serviço a fim de mostrar o potencial desse tipo de abrigo.

Uma das discussões em andamento no país é a ampliação da idade máxima para permanência no acolhimento – hoje limitada aos 18 anos incompletos. A proposta é permitir a extensão até os 21 anos, considerando a dificuldade dos adolescentes em conquistar autonomia e apoio suficientes para estruturar um projeto de vida ao deixarem a tutela do Estado.

Em Cascavel, essa possibilidade já é realidade. A cidade tem uma equipe especializada no trabalho com adolescentes acolhidos. Segundo Mary Weber, coordenadora do SFA no município, os jovens que completam a maioridade no serviço costumam já ter vínculos profundos com as famílias acolhedoras. Por isso, muitas vezes permanecem na residência mesmo após os 18 anos. “Isso é conversado desde a capacitação, para que as famílias saibam que existe a possibilidade de ele ficar”, explica.

Dois casos recentes em Belo Horizonte demonstram o impacto positivo do acolhimento de adolescentes. Em um deles, a jovem obteve apoio para prestar vestibular e, com a ajuda do SFA, conseguiu uma república para se manter durante os estudos. Em outro, a família acolhedora optou por manter o jovem em casa mesmo após os 18 anos. Ele passou a trabalhar, contribuir com as despesas básicas e guardar dinheiro em uma poupança, planejando seus próximos passos com segurança e apoio.

A Secretaria Nacional de Assistência Social está realizando estudos e planejamentos para disseminar metodologias específicas para trabalhar com os adolescentes e tornar relatos como os de Cascavel e Belo Horizonte ainda mais frequentes. Dessa forma, o Brasil pode avançar com a política pública e ampliar a divulgação do serviço para que, em breve, as mais de 34 mil crianças e adolescentes desabrigados, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), possam estar em uma família acolhedora.