Serviço que deveria ser o destino prioritário para crianças em situação de vulnerabilidade é pouco conhecido e enfrenta resistências para se consolidar.Uma criança de cinco anos é encontrada em situação de abandono, desnutrida e com sinais de abuso. Para garantir os direitos estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o serviço social municipal a encaminha para uma nova residência temporariamente enquanto busca os responsáveis biológicos ou parentes mais próximos. Ao invés de ser recebida num abrigo institucional, a criança é direcionada a uma família acolhedora apta a lhe dar o necessário para o seu desenvolvimento.

Esse deveria ser o destino prioritário para crianças em situação de vulnerabilidade, especialmente entre os 0 e 6 anos – a chamada primeira infância. No entanto, apenas 6,1% das mais de 34 mil crianças brasileiras que se encontram em situação de desabrigo estão em uma família acolhedora, segundo dados do Conselho Nacional da Justiça (CNJ) de maio de 2025.

Ainda emergente no país, o Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora (SFA) oferece um abrigo temporário em um núcleo familiar previamente preparado para receber a criança em situação de vulnerabilidade. Cerca de 3,1 mil famílias estão cadastradas nesse sistema.

Durante o tempo em que o menor de idade passa na família acolhedora, ele tem a oportunidade de desenvolver outros conhecimentos que partem, justamente, da convivência no dia a dia. A reintegração à família de origem ou inserção na família extensa ou adotiva “se dá de forma mais rápida e fácil, porque ela aprendeu a conviver em família “, pontua Fernanda Flaviana, secretária executiva do Movimento Nacional Pró Convivência Familiar e Comunitária (MNPCFC).

Estudos comprovam que o acolhimento institucional impacta no desenvolvimento cognitivo, físico e social. As crianças se beneficiam do afeto recebido e da inserção na comunidade em que a família pertence, mantendo uma relação de confiança diferente da estabelecida em um abrigo institucional.

Da institucionalização ao apego

O acolhimento familiar exige que as pessoas abram não só as suas casas, enquanto espaço físico, mas também suas rotinas e intimidade. Durante todo o tempo de acolhimento, as famílias e as crianças são constantemente acompanhadas pela equipe do SFA, o que inclui visitas periódicas e atendimento psicológico aos menores para auxiliar na adaptação.

“Quando uma família acolhedora recebe uma criança, ela não acolhe só a criança, mas uma problemática”, afirma Jane Valente, pesquisadora e profissional que fez parte da primeira leva de estudiosos sobre o tema.

O maior benefício e, também, o maior embate subjetivo é com relação ao vínculo criado com a criança ou adolescente. Isso reflete a dificuldade, enquanto sociedade, de debater sobre a finitude das relações. Como Valente explica, “é um amor sem posse”, em que o menor de idade tem um tempo máximo, de 18 meses, até ser reintegrado na família de origem ou extensa ou ser dirigido à adoção.

Para as famílias um dos maiores desafios é a despedida. Pensar em deixar partir cria barreiras e é “um problema dos adultos, porque eles têm dificuldade de entender que vão cuidar sabendo que vai partir”, afirma Julia Salvagni, coordenadora de projeto na Secretaria Nacional de Assistência Social.

De acordo com Carlos Henrique de Oliveira Nunes, coordenador do Serviço de Acolhimento Familiar de Belo Horizonte, essa situação envolve um processo de conhecimento da própria família, para compreender que “o acolhimento tem início, meio e fim. A partir desse serviço, segundo ele, a sociedade rompe a lógica do “meu” e passa a entender as crianças como “nossas”, parte do coletivo comunitário.

Mas apesar de relativamente curto, esse período deixa marcas para a vida toda nas crianças acolhidas. Mary Weber, assistente social do Serviço de Família Acolhedora em Cascavel, no interior do Paraná, relata o retorno que receberam de uma família adotiva via carta encaminhada por meio do Poder Judiciário: “ele agradeceu ao serviço por ter cuidado do filho dele. A criança fala muito bem da família acolhedora e traz memórias afetivas do período em acolhimento. Diz que a mãe acolhedora o ensinou fazer bolinho, contava histórias… É esse olhar individualizado que o acolhimento familiar propicia e que uma instituição não consegue alcançar, infelizmente”.

Os marcos legais das Famílias Acolhedoras no país

Apesar dos esforços atuais, o Brasil ainda é um jovem no tema, uma vez que projetos de acolhimento familiar começaram a ser implementados apenas no final da década de 1990. Enquanto em outros países, como Reino Unido, o formato de família acolhedora já era aplicado desde o início do século 20.

A virada de chave para o acolhimento familiar foi a criação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS), em 2004, que organizou o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e definiu o SFA como serviço de alta complexidade. Dois anos depois, criou-se Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Posteriormente, o ECA promulgou a Lei nº 12.010, em 2009, e institui que “a inclusão da criança ou adolescente em programas de acolhimento familiar terá preferência a seu acolhimento institucional”.

Mesmo com os avanços legais, a política pública ainda caminha a passos lentos para se disseminar e se consolidar. Apenas 697 municípios, cerca de 12,5% do total no país, possuem o serviço em execução, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS).

Os desafios para ampliar o programa

A principal dificuldade é o desconhecimento da própria sociedade. Muitos ainda confundem esse modelo com a adoção em si, sem saber que o acolhimento familiar tem um caráter provisório. Na Unidade de Acolhimento de Belo Horizonte, em Minas Gerais, a campanha mais recente de mobilização para captação de famílias resultou em 250 interessados iniciais, mas somente 25 passaram do questionário inicial aplicado por telefone.

Além disso, muitos municípios esbarram nos entraves logísticos de direcionar uma equipe exclusiva para o atendimento, que requer um coordenador, um assistente social e um psicólogo para prestar suporte para no máximo 15 crianças. Como alternativa, a regionalização está se tornando uma prática popular entre os municípios – especialmente os de pequeno porte. Dessa forma, o serviço pode ser oferecido de maneira integrada entre diferentes cidades próximas.

Outro grande desafio na implementação do acolhimento familiar é a luta contra a cultura da institucionalização no Brasil. O formato de enviar crianças e adolescentes para abrigos foi, por muito tempo, visto como uma solução, especialmente para os mais pobres, pontua Nunes.

O caráter provisório da família acolhedora também deveria caminhar em constante alinhamento com outras políticas públicas assistencialistas. Para Cristiane Ferreira Mendes, Gerente de Proteção Social Especial de Alta Complexidade da Secretaria de Assistência Social de Santa Catarina (SAS/SC), esse trabalho em conjunto é essencial. “É importantíssimo que todo mundo trabalhe em conjunto para também dar uma segurança para essas famílias que pretendem fazer esse serviço”, destaca.

Para Salvagni, esta é a “política pública mais ousada” que está em vigor atualmente. Isso porque ela pega “o que há de mais íntimo, esse convite para dentro de uma casa, de uma família, e coloca dentro de uma política pública, que é o que temos de mais amplo e pensado para atingir a todos”. Ela exige que a comunidade dê um passo para trás no individualismo e pense enquanto sociedade, enquanto um trabalho voluntário.