08/11/2025 - 7:03
Seis anos após tragédia ambiental, queixa mirando executivo da TÜV Süd não virou denúncia. Certificadora é acusada de ter falsamente atestado estabilidade de barragem da Vale.Josiane Melo nasceu em Brumadinho e cresceu ouvindo o barulho dos trens que transportavam o minério das Minas Gerais. O seu grande sonho era trabalhar na Vale, uma das maiores mineradoras do mundo, o que ela realizou ao longo de 18 anos como engenheira na cidade natal.
Mas, desde que se rompeu a barragem da Mina Córrego do Feijão, há mais de seis anos, a sua vida se resume a lutar na Justiça contra o setor, no Brasil e na Alemanha.
Naquela manhã de 25 de janeiro de 2019, a maior tragédia ambiental brasileira matou a sua irmã, Eliane Melo, que também trabalhava na mina, então com 39 anos e grávida de cinco meses de Maria Elisa. Josiane estava no último dia de férias e escapou do risco de ser uma de 272 vítimas fatais, incluindo dois nascituros.
Hoje, ela é uma das seis requerentes que, desde aquele mesmo ano, se queixam criminalmente na Alemanha contra a certificadora TÜV Süd, atribuindo particular responsabilidade a um dos executivos da matriz em Munique, na Bavária. A subsidiária da empresa no Brasil atestara a estabilidade da barragem quatro meses antes do colapso, garantindo a continuidade da sua operação.
“Eu não sabia que aqueles trens carregando riquezas levariam um dia a minha vida. Hoje, a busca por Justiça é a única coisa que me impulsiona”, disse Josiane em Berlim. Uma comitiva da associação de famílias das vítimas de Brumadinho viajou à Alemanha em outubro. Pela quarta vez, se reuniram com autoridades e entidades para pressionar pela abertura de uma denúncia por promotores bávaros.
Suposto laudo falso
Investigações de uma força-tarefa liderada pelo Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG) afirmaram que o escritório brasileiro da TÜV Süd teria emitido um laudo que falsamente atestava a estabilidade da barragem em Brumadinho, apesar de riscos de segurança já existentes.
O gestor de área de infraestrutura Chris-Peter Meier teria tido papel importante na decisão, uma vez que seria o ponto de contato decisório entre engenheiros no Brasil e a sede corporativa na Alemanha. Uma troca de e-mails interna de maio de 2018, à qual o MP-MG teve acesso, sugere que os funcionários brasileiros e Meier sabiam da instabilidade da barragem e cederam à pressão da Vale.
A TÜV Süd defende que a subsidiária seguiu os parâmetros técnicos e as regulações brasileiras. “A barragem se encontrava estável no momento em que as declarações de estabilidade foram emitidas”, escreveu a matriz na Alemanha em nota à DW. Diz ainda que uma inspeção das autoridades brasileiras em novembro de 2018 não levantou preocupações de segurança.
Outras empresas de certificação, segundo o MP-MG, já haviam apontado riscos na barragem de Brumadinho. Mais tarde, a TÜV Süd seria contratada para a certificação da estrutura no Córrego do Feijão e para prestação de consultoria interna, o que configuraria conflito de interesses, ainda de acordo com a promotoria.
Aberta em outubro de 2019 por duas organizações locais, a queixa criminal na Alemanha argumenta que, não tivesse a empresa assegurado a estabilidade da barragem, mortes e danos ambientais poderiam ter sido evitados. A TÜV Süd, porém, rejeita que tenha sido conclusivamente estabelecida relação de causalidade.
“Sob a lei alemã, isso pode se traduzir em negligência por causar uma inundação, homicídio culposo pelas 272 vidas perdidas e suborno privado”, afirma Cannelle Lavite, co-diretora do programa de Negócios e Direitos Humanos do Centro Europeu para Direito Constitucional e Humano (ECCHR).
Passos lentos
Uma queixa de infração administrativa também foi apresentada pela ECCHR e pela Misereor. A TÜV Süd é acusada de ter violado sua obrigação de supervisão, a fim de evitar que crimes fossem cometidos no seio da empresa.
As famílias de Brumadinho reclamam de morosidade no avanço do caso nos tribunais alemães, e os seus advogados lamentam o limitado acesso a informações sobre os procedimentos judiciais em curso, que tramitam em sigilo. “É a minha terceira vez na Alemanha e, a cada vez, a esperança vai diminuindo,” prosseguiu Josiane.
Corre ainda um processo cível na Alemanha em que, no quinto aniversário do colapso, 1,4 mil pessoas pleiteavam uma indenização em torno de 600 milhões de euros (cerca de R$ 3,2 bilhões) da TÜV Süd.
“Os processos correm silenciosos e lentos”, complementou o analista de sistemas Sergio Amaral, também em Berlim. Outro funcionário da Vale morto na tragédia, o seu irmão Adriano Amaral deixou esposa e dois filhos, à época com 8 e 5 anos. O seu corpo foi encontrado dentro de uma caminhonete no dia seguinte ao rompimento.
No ano da tragédia, a receita de vendas da TÜV Süd foi de 2,6 bilhões de euros. “Indenizações e multas são facilmente absorvidas pelas companhias e não geram mudança de comportamento”, diz o advogado Danilo Chammas, que representa a Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem Mina Córrego do Feijão (Avabrum).
A TÜV Süd foi proibida pela Justiça de emitir novos laudos no Brasil, e a maior parte das indenizações foram pagas pela Vale às famílias das vítimas, segundo a associação.
A matriz alemã disse ainda à DW que não se envolveu na emissão de declarações de estabilidade e que coopera com as autoridades competentes no Brasil e na Alemanha. Não comentou especificamente sobre Meier.
Regulação das cadeias
Já o início das audiências de instrução e julgamento das ações penais na Justiça brasileira é esperado para 2026, quando deverão ser ouvidas testemunhas e réus. Enquanto isso, o Ministério Público Federal (MPF) aguarda julgamento de recurso pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), no qual pede que Fábio Schvartsman, ex-presidente da Vale, responda por homicídio doloso e crime ambiental.
Para Lavite, do ECCHR, falta regulação sobre empresas de auditoria como a TÜV Süd, apesar de os últimos anos terem visto uma tendência favorável, na Alemanha e na Europa, à responsabilização de empresas que causem danos sociais e ambientais. “As certificadoras são pagas diretamente pelas empresas que auditam, um inevitável conflito de interesses,” afirma.
Desde 2023, a Lei da Cadeia de Suprimentos da Alemanha exige auditorias para garantir que os fornecedores de empresas alemãs cumpram regras ambientais e trabalhistas. O atual governo, entretanto, quer o fim da lei e a sua substituição pela norma europeia sobre o tema.
“Queremos que a punição de empresas seja um modelo pedagógico para que outras pessoas não passem pela mesma coisa”, afirmou Josiane. Os afetados pelo desastre em Mariana, também em Minas Gerais, pressionam igualmente pela responsabilização das mineradoras envolvidas, tanto no Brasil quanto na Inglaterra.
Nos arredores de Brumadinho, a Mina da Jangada, vizinha ao Córrego do Feijão e arrendada pela Vale, passou a ser explorada neste ano pela empresa Itaminas. A volta da mineração preocupa os moradores que não se esquecem dos 13 milhões de metros cúbicos de lama e rejeitos de minério de ferro que arrasaram a vida na região.
Hoje, um memorial com 272 ipês amarelos ocupa o espaço onde a barragem da Vale se rompeu. A mineradora brasileira não respondeu a um pedido de comentário até o fechamento da reportagem.
