07/03/2019 - 10:39
Três anos após a independência da Argélia – após oito anos (1954-1962) de guerra civil –, o diretor italiano Gillo Pontecorvo filmou “A Batalha de Argel”. O filme aborda um dos episódios mais sangrentos na Guerra da Argélia, quando a Frente de Libertação Nacional (FLN), pró-independência do país, enfrentou as autoridades coloniais francesas em 1957.
Em 19 de junho de 1965, enquanto o filme era rodado, as tropas da FLN do coronel Houari Boumédiène entraram na Argélia. Tanques usados nas filmagens se misturavam aos tanques reais, e os apoiadores do presidente Ahmed Ben Bella não viam nada além de fogo. Como resultado, ele foi derrubado.
Meio século mais tarde, em 2017, Malek Bensmaïl examinou o papel histórico do clássico do estilo reportagem em preto e branco de Pontecorvo em seu documentário “A Batalha de Argel, um Filme dentro da História”. Mas esse não é um “filme sobre um filme”, explica. É mais uma interpretação da história de um país – a revolução, o golpe, as mudanças de regime e a descolonização. Por quase 30 anos, o diretor argelino tem criado o que chama de “memória contemporânea” de seu país.
Por que o sr. escolheu o documentário como forma de expressão?
Bensmaïl – Mais que a ficção, o documentário é capaz de combater mitos nacionais. Não para destruí-los, mas para pô-los em seus lugares, para que eles não destruam a sociedade. Se você não filma sua própria realidade, como poderá assistir a si mesmo? De onde viriam sua inspiração, seus sonhos? Também, deve-se lembrar, o cinema nasceu do documentário – lembra-se dos irmãos Lumière? O documentário determina a imaginação coletiva. É a realidade que nutre a ficção e oferece um espelho à sociedade. Sei que filmar a vida real pode ser perturbador, mas também sei que amadurece. Nos anos 1990, período da “década negra” na Argélia, optei pela realidade. E sigo no mesmo caminho. Minha ideia é fazer um filme, a cada um ou dois anos, sobre pessoas, instituições e questões sociais importantes. Eu gostaria que esses filmes oferecessem um melhor entendimento sobre como um país é construído ao longo dos anos. Minha intenção é criar uma memória contemporânea, ao mostrar esse laboratório que é a Argélia – um país procurando sua identidade, com seus progressos, seus retrocessos e suas questões. Você não alcança a democracia em um estalar de dedos. Nem com armas!
Um dos pilares da democracia, a liberdade de imprensa, é o assunto do seu filme sobre o jornal independente argelino “El Watan”, lançado em 2015. Por que o sr. o intitulou “Contre-pouvoirs” (Contra Poderes)?
Bensmaïl – Liberdade de imprensa é uma condição da democracia, um direito pelo qual muitos jornalistas pagaram com a vida. A guerra civil (1991-2002) deixou 200 mil mortos e 100 mil desaparecidos. Cerca de 120 jornalistas argelinos foram mortos por extremistas islâmicos entre 1993 e 1998. Mas isso ainda não significa que a liberdade de imprensa represente uma força real de oposição em meu país atualmente. Para esse filme, quis dar um olhar “oblíquo”, seguindo um time de jornalistas em seu trabalho. O que me interessou não foi tanto a imprensa como uma força contrária, mas as forças contrárias representadas por indivíduos. Na Argélia, a noção de indivíduo ainda não se desenvolveu totalmente. Estamos trancados em uma ideia de comunidade. Temos uma nação para defender, um país para defender, um Deus para defender, um idioma para defender. Sempre há “aquela” figura, que é onipresente e onipotente, e que deveria incluir a todos nós – quando na realidade há celebridades, intelectuais, jornalistas, juízes, estudantes, etc. que vivem em um espaço multicultural e multilíngue, que pensam de modo diferente e constituem forças contrárias necessárias a uma democracia.
De que vale um jornal independente se ele não tem nenhum impacto na sociedade?
Bensmaïl – Mesmo se ele não constitui uma força contrária real, a imprensa livre consegue condenar atos de violência invisíveis, dos quais ninguém fala. A Argélia é atualmente vista como um país calmo, protegido do terrorismo, mas na realidade não está imune à humilhação e à manipulação. “El Watan” não é o único jornal fazendo seu trabalho. Há diversos outros, como “Le Quotidien d’Oran”, “El Khabar”, “Liberté” e, até certo ponto, “Le Soir d’Algérie”, também envolvidos na resistência e na luta. Eles não são jornais de oposição. Seu objetivo é oferecer informações precisas de fontes equilibradas. Além disso, a maioria deles tem websites gratuitos e acessíveis a todos.
O que o “El Watan” faz para preservar sua independência e sobreviver?
Bensmaïl – Com a venda de jornais – sua tiragem é de 140 mil cópias, vendidas em 20 bancas argelinas (por cerca de €0,20 cada) – e de propaganda. Privado da receita de propaganda do estado desde 1993, o jornal tem investido em uma rede de publicidade e de distribuição, e em uma gráfica independente que divide com o “El Khabar”. O jornal também se voltou para a publicidade privada, o que lhe permite pagar os cem jornalistas e correspondentes da sua redação. O jornal passou por pelo menos seis interrupções em suas publicações e esteve envolvido em cerca de 200 processos legais, que o tornaram vulnerável financeiramente. Fiquei surpreso ao ouvir que Omar Belhouchet, o fundador e diretor do jornal, acredita que esses casos sejam importantes para o processo democrático. Imagino que tenham sido experiências dolorosas, mas ele sentiu que lhe permitiram não apenas defender os jornalistas e cartunistas, como também defender a noção de liberdade de expressão, escrita na Constituição. Esses julgamentos dão a Belhouchet a oportunidade de explicar ao tribunal o que é uma caricatura, o que é humor, o que é uma crônica, o que é uma investigação e onde estão as restrições para a sociedade. Na verdade, ele usa esses casos para educar jovens magistrados sobre a liberdade de imprensa.
A educação tem papel central no seu documentário “La Chine Est Encore Loin” (A China Ainda Está Distante, de 2008). Por que o sr. cita a China quando fala sobre uma sala de aula em Tiffelfel, uma aldeia nas montanhas Aurès, onde a guerra da Argélia começou, em novembro de 1954?
Bensmaïl – O título faz referência a uma frase do profeta Maomé: “Busquem conhecimento, indo à China se for preciso”. A China é, porém, uma terra simbólica, a terra do conhecimento, que apenas poderá ser alcançada com um esforço considerável. Uma terra ainda distante, vista da Argélia. Logo antes desse filme, fiz um documentário sobre a loucura (“Aliénations”, 2004). Passei três meses em um hospital psiquiátrico e encontrei vários casos de pessoas com delírios político-religiosos. Eu me perguntava qual a origem dessas patologias. Um psiquiatra me respondeu: “É a sociedade”. Isso me encorajou a procurar saber como os jovens estavam sendo ensinados, que ideias recebiam na escola. Então fui à escola na aldeia onde a Guerra da Argélia começou. Essa guerra muito violenta durou quase oito anos. Graças a sua vitória, a Argélia se tornou um mito, e sucessivos regimes trabalharam muito para consolidá-lo. Não estou dizendo que a criação de um senso de orgulho nacional entre as pessoas não seja algo bom. Mas não concordo quando isso é feito de uma forma que não condiz com o dia a dia local. Eu queria filmar a Argélia que trabalha e que luta todos os dias por trás desse mito. O filme mostra o abismo que separa o mito da realidade social. No fim do dia, percebemos que o que estamos pondo na mente das crianças é o ódio ao outro. O filme também mostra que a educação sobre o “Alcorão” está muito distante das palavras de Maomé. O islamismo político causou tanto prejuízo que ainda é sentido hoje, sobretudo nas áreas rurais.
É por isso que apenas uma mulher – Rachida, a faxineira da escola – tem voz no filme?
Bensmaïl – Rachida é incrível. Ela me deu uma lição maravilhosa sobre liberdade! Ela vem de uma aldeia no sul da Argélia, de onde precisou sair porque era divorciada e, portanto, considerada prostituta. Era impossível entrevistar outras mulheres, embora nessa região elas tenham sido conhecidas pelo gerenciamento da economia – a fabricação de tapetes e a agricultura estavam em suas mãos. Hoje elas ficam escondidas atrás das paredes de suas casas. No interior, elas dificilmente saem de casa, mesmo com véus. São os homens que vão aos mercados. Os anos de islamismo e conservadorismo destruíram o papel social tradicional das mulheres e todos os ganhos que elas haviam conquistado com sua emancipação. Durante as filmagens, elas nos mandavam bandejas de comidas, bolos e cafés por meio das crianças, mas não víamos nenhuma mulher.