04/11/2014 - 16:26
Em compensação, já é possível definir quanto queremos que a medicina interfira nos nossos últimos suspiros.
“A morte é hereditária”, diagnosticou Millôr Fernandes com sua sutileza característica. Apesar de saber que esta é a única coisa certa da vida, poucos estão preparados para falar disso. Não vire a página ainda, como quem quer mudar de assunto, porque, quanto mais a medicina evolui, tanto mais importante é pensar em como se quer morrer, e viver.
Diante de maiores chances de tratamento e de sobrevida, é bom se perguntar: “em que condições vale a pena prolongar a permanência aqui?” E mais. Você sabe o que seus familiares fariam diante de uma situação em que você já não tivesse lucidez para decidir? Ou como eles gostariam que você atuasse, caso fosse a saúde deles em questão? O que o aflige mais: a sua morte ou a das pessoas que ama? Como quer que sejam seus últimos meses ou dias?
Para a enfermeira e Ph.D. em política de saúde pública Norma Bowe, professora do curso Death in Perspective, na Universidade Kean (Nova Jersey, EUA), conversas francas sobre tudo o que envolve o fim da vida é o que está faltando na sociedade atual para as pessoas lidarem melhor com a questão da morte. “Não queremos nem pensar nem falar sobre qualquer coisa triste e desagradável. Mas é de grande ajuda as famílias saberem o que querem seus entes queridos em fase terminal”, disse à PLANETA.
O curso de Norma tem lista de espera de três anos e já virou livro, The Death Classes, escrito por uma das suas alunas, a jornalista Erika Hayasaki. Em breve, a obra publicada no início do ano (ainda não traduzida ao português) deve ser adaptado como série de TV – os direitos foram comprados pela atriz Jennifer Carpenter e pelo produtor George Stelzner. O grande sucesso do curso está na proposta diferenciada de Norma tratar o tema. As aulas não são puramente expositivas, mas principalmente conversas abertas, atividades práticas e visitas inusitadas a cemitérios e funerárias e até autópsias. Entre os alunos, muitos lidam com grandes perdas ou diagnósticos de doenças crônicas e fatais. “É terapêutico, mas não substitui a terapia”, emenda Erika.
Erika conta que sofria de muita ansiedade por cobrir constantemente acontecimentos envolvendo morte – do início de carreira, escrevendo obituários, a fatos marcantes como os atentados de 11 de setembro de 2001 e o massacre da Universidade Virginia Tech, em Blacksburg, em 2007. Poder discutir sensações e experiências nas aulas permitiu-lhe baixar essa ansiedade e controlar a angústia. “Reduzir o medo excessivo de assumir riscos, de perder os outros ou a própria vida, e se concentrar mais em viver bem e aproveitar cada minuto valioso aqui. É sobre isso o curso e o livro!”, resumiu em conversa com a PLANETA.
Aulas, debates, jantares, cafés, conferências e congressos sobre a morte estão se tornando cada vez mais frequentes pelo mundo afora. Desde o julgamento do médico norte-americano Jack Kervokian, conhecido como “Doutor Morte”, na década de 1990 – quando foi condenado por ajudar mais de uma centena de pacientes a cometerem a eutanásia –, a discussão sobre o livre arbítrio em relação à própria morte ganhou o mundo. Atualmente, o debate evoluiu para a possibilidade de não usar recursos da medicina, seja por meio de tratamentos ou máquinas.
Diante dessa realidade, surgiram na Suíça, há dez anos, os Death Cafes, coordenados pelo sociólogo Bernard Crettaz com acesas discussões sobre a finitude da vida. A ideia se disseminou pela Bélgica, França, Reino Unido, Estados Unidos e muitos outros países. No Brasil, o evento aconteceu pela primeira vez em 2012, em São Paulo, mas não teve tanta continuidade quanto no exterior. O assunto aqui ainda beira o tabu.
Último desejo
Sem fazer oficialmente parte desse grupo, a advogada Luciana Dadalto e a médica clínica Cristiana Guimarães Paes Savoi realizam mensalmente um encontro em Belo Horizonte com o mesmo propósito. As duas se conheceram quando a médica decidiu fazer seu “testamento vital”, o documento que defi ne regras quanto ao tratamento que a pessoa quer receber antes de morrer, em caso de condições físicas ou mentais incuráveis ou irreversíveis. Luciana é especializada no tema, tem vários livros publicados a respeito e, inspirada na prática de outros países, mantém do próprio bolso um site para registro nacional das “diretivas antecipadas de vontade”, nome técnico.
Por presenciar “várias formas equívocas de morrer” na prática da sua profissão, Cristiana considerou natural preparar seu testamento vital. Desde 2005, a tanatologia, ciência que estuda a morte, tem sido assunto de interesse da médica. Em 2010, ela foi para a Itália se especializar no tema e em cuidados paliativos (aqueles dispensados aos pacientes sem possibilidade de cura). “Na época, o testamento vital estava em discussão lá. Eu acompanhei toda a polêmica que pode significar em um país super-religioso a associação desse documento com a eutanásia”, conta.
Em 15 anos de atuação no Brasil, Cristiana recebeu apenas um paciente que apresentou seu testamento vital. O próprio marido dela era reticente. “Ele reagiu por muito tempo dizendo ‘que coisa mórbida!’, mas outro dia demonstrou interesse em fazer o seu também”, comenta. Além dele, dois amigos e dois pacientes, infl uenciados por ela, já aderiram ao documento – todos com mais de 50 anos e sem complicações de saúde.
Com a facilidade de informação por meio da internet, esse instrumento legal começa a ser mais difundido no país. Em 2013, o Colégio Notarial do Brasil contabilizou 471 testamentos vitais lavrados em cartório, mais que o triplo em relação a 2012 (163) e sete vezes superior aos de 2011 (65). Embora as adesões aumentem, o Brasil ainda não tem sequer um projeto de lei a respeito – enquanto Estados Unidos e Austrália já têm regras claras desde 1990.
“A proposta que existe é para descriminalizar a ortotanásia, termo médico para morte natural, sem interferência da ciência”, explica a advogada Luciana. Somente o Estado de São Paulo tem a “Lei Covas”, de 1999, que trata sobre os direitos dos pacientes de consentir ou recusar procedimentos diagnósticos ou terapêuticos a que serão submetidos e de escolher o próprio local de morte.
Do cartório ao hospital
“O brasileiro tem muita dificuldade de pensar na morte e o médico não é formado para o fracasso. Às vezes ele investe no paciente a qualquer custo”, alerta Luciana. A formação dos profissionais de saúde tampouco costuma ter muito espaço reservado para discussões sobre a morte – como conviver no dia a dia com essa realidade, como comunicar familiares do falecimento, como aceitar um paciente que não queira tentar tudo o que está à disposição para estender a vida, e coisas do tipo.
Em 2012, uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) avançou um pouco na questão, determinando os critérios para que pacientes possam, junto ao médico, estabelecer limites terapêuticos na fase terminal. Por exemplo, ventilação mecânica (uso de respirador artificial); tratamentos (medicamentoso ou cirúrgico) dolorosos ou extenuantes; ou mesmo a reanimação na ocorrência de parada cardiorrespiratória.
Um exemplo claro é o de morte encefálica. Nesses casos, mundo afora, os equipamentos são desligados ou é feito encaminhamento para doação de órgãos. “Essa é uma decisão técnica, mas no Brasil espera-se que o coração pare, inclusive para evitar confl ito com a família”, destaca Desanka. Apesar de não ser um processo muito longo – costuma acontecer entre 24 e 48 horas –, o investimento de recursos é alto. É um tratamento dispensado a uma pessoa morta, enquanto outra viva e com possibilidade de cura poderia estar se beneficiando do leito.
Se, de um lado, a familia sempre espera que o paciente volte para casa, do outro, é sempre difícil para o médico perder um paciente. Apesar do impasse, Desanka é otimista. A seu ver, a discussão está evoluindo e em processo de melhora. “Congressos e comitês estão trabalhando em definições de protocolos para o intensivista não ficar tão exposto na hora de tomar a decisão, e para garantir mais segurança ao paciente também.” A doutora gosta da definição que escutou de uma amiga: “Quem sabe viver sabe morrer”. Na experiência dela, famílias problemáticas complicam a vida do paciente e do médico. Já aquelas mais unidas e com bom relacionamento costumam respeitar o profissional, por mais dolorosa que seja a perda.
Apesar de conviver diariamente com uma questão que envolve tanta tristeza, a professora Norma Bowe garante que não se deprime. “Ao contrário. Vejo belos atos de bondade e compaixão no meu trabalho, vejo coragem e sacrifício. Às vezes, encarar a morte pode mudar a vida das pessoas.”