Iluminada à luz de velas durante um apagão, Festa Literária Internacional de Paraty teve 19 das 20 meses mediadas por mulheres e reflexões sobre o papel da literatura em uma realidade social em transformação.O público que compareceu a Paraty para celebrar a literatura na 21ª Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) encontrou no clima de novembro uma forte barreira. Além do calor intercalado com chuvas torrenciais, na sexta-feira (24/11) um apagão obrigou a cidade a se iluminar de velas durante toda a noite, rememorando a época colonial para além de seu casario histórico.

Graças à falta de planejamento da concessionária de energia Enel, também envolvida no apagão que deixou diversas áreas da região metropolitana de São Paulo sem luz por vários dias após uma tempestade no início do mês, a edição de 2023 da festa, pensada como merecida homenagem à autora e ativista política Pagu, será mais lembrada como a Flip do apagão. Mas isso não foi capaz de anular o caráter mais tradicional da festa: o encontro de escritores e escritoras com aqueles e aquelas que leem suas obras entre o mar e o calçamento de pedras dos espaços públicos da cidade.

O programa principal, com 44 autores e autoras de mais de dez países, realizado de 22 a 26 de novembro, seguiu a trilha apontada pelas curadoras Fernanda Bastos e Milena Brito já no ano passado, defendendo maior equilíbrio entre nomes nacionais e estrangeiros e marcante presença feminina. Os painéis foram pautados por questões ligadas ao feminismo, à diversidade dos corpos, a modelos para uma vida mais sustentável e discussões identitárias e de gênero. Das 20 mesas (intituladas a partir de citações da obra de Pagu), 19 foram mediadas por mulheres.

Mónica Ojeda e o medo

Entre os convidados estrangeiros, destacou-se a equatoriana Mónica Ojeda, uma das vozes mais inovadoras da literatura latino-americana atual. Com uma obra dedicada ao tema do medo e uma bem desenhada articulação entre a ancestralidade andina e o cotidiano de nosso tempo, livros como Mandíbula e o volume de contos Voladoras foram construídos sobre uma particular abordagem do corpo, sobretudo o feminino; “um lugar de paradoxo e conflito”, de acordo com seu ponto de vista.

No painel dividido com a escritora espanhola Alana Portero – uma mulher trans cujo livro de estreia, Mau hábito, mereceu elogios do cineasta Pedro Almodóvar –, a poeta e tradutora Stephanie Borges, responsável pela mediação, definiu a escrita de ambas como um flerte com o perigo; tanto o de escrever quanto o de estarem vivas em um mundo hostil ao corpo das mulheres.

Perguntada pela DW sobre qual deve ser a postura ética na relação entre o corpo que sente medo e quem escreve sobre ele, Ojeda disse que “um corpo que escreve sobre o medo, sabe o que é o medo e o teme quando escreve e quando não escreve. O medo é uma experiência da qual nenhum ser humano pode se subtrair. É uma experiência coletiva e a ética de quem escreve sobre ele começa por aí, por saber que jamais estará escrevendo sobre algo privado”.

“Nova história” e identitarismo

Esta percepção do ato de escrever como instância compartilhada encontrou eco entre os participantes da mesa de encerramento, Itamar Vieira Jr. e Glicéria Tupinambá. Para o primeiro, autor best-seller com 1 milhão de exemplares vendidos no país do romance Torto arado, de 2018, traduzido para mais de 20 idiomas, “fala-se muito do trabalho solitário do escritor, mas é impossível pensar em literatura sem pensar no coletivo. (…) As minhas personagens carregam a história que nos trouxe até aqui.” Já a antropóloga e artista visual da etnia tupinambá, fiel à tradição cosmogônica dos povos originários, deu um passo além ao anunciar o caráter coletivo não só da história, mas do próprio tempo – que se desenvolve, segundo sua visão, como as dobras do lençol pendurado no varal sob o sol. A cada nova dobra, o futuro é projetado no presente.

Reafirmando a vocação dialógica da Flip, alguns embates com enredo e endereço claros foram travados, embora sem que nomes fossem citados. Na mesma mesa, Vieira Jr. afirmou: “O que ocorre hoje, parece uma mudança de paradigma. Se antes nos importávamos com quem fundou Paraty, quem foi o urbanista (…), com os privilegiados do destino, hoje a gente não aceita mais essas explicações e queremos colocar em evidência aqueles também que quebraram pedras e calçaram as ruas e ergueram as casas e que fizeram muito mais. Talvez isso crie um desconforto entre os que já detinham privilégios e não se reconheçam nessa nova história que é contada hoje no Brasil.”

O testemunho pode ser entendido como resposta ao comentário do escritor Bernardo Carvalho – autor de, entre outros, Nove Noites, de 2002; O sol se põe em São Paulo, de 2009; e do mais recente Os substitutos – proferido dois dias antes. Em debate promovido por um dos espaços parceiros do evento, o escritor sustentou críticas que vem fazendo sobre o identitarismo na literatura atual: “Há essa ideia [na literatura contemporânea] de você não ter condições de lidar com a diferença. A diferença da qual se fala é super domesticada, é espelho. A ideia de criar uma arte que seja reprodução de si mesmo, no sentido de criar uma autossatisfação, é algo empobrecedor. (…) Esse fim do mundo [a crise climática] é culpa nossa, e você quer se empoderar?”

Território como lugar da multiplicidade

Na mesa em que participou lado a lado com o judeu ucraniano Ilya Kaminsky e a carioca Bruna Beber, o poeta soteropolitano Jorge Augusto ofereceu importante contribuição a este debate. Ao relembrar que Salvador é a cidade mais negra do mundo fora da África e também a cidade brasileira em que mais se matam pessoas negras, determinou como questão central da literatura contemporânea o desafio de encontrar o meio termo entre a elaboração estética e o discurso contra a naturalização deste tipo de situação. Mesmo quando escreve baseado na própria biografia, rejeita o rótulo memorialístico, porque acredita ser papel do escritor “dar o testemunho do que acontece e não do que passou”, uma vez que “falar a partir do território não é falar sobre o território, não é regionalismo; o território é o lugar da multiplicidade”.

A fala se alinha com o pensamento do também poeta Kaminsky, cuja obra República surda, recém-lançada no Brasil, foi escolhida como livro do ano de 2019 pelo jornal New York Times. Para o deficiente auditivo refugiado nos Estados Unidos desde os 14 anos, a pólis é origem de poesia, e por isso incorpora uma pergunta metafísica sobre si mesma. O posicionamento de ambos sobre a arte e a cidade, quer seja na abordagem política ou estética, acabou sendo alinhavado por Glicéria Tupinambá em sua participação na mesa final: para ela, é o corpo o primeiro território e pertença.

À possibilidade da discussão se estender por diferentes mesas, deve-se dar o crédito à estratégia de coesão da curadoria. Mesmo não sendo tema específico de todos os painéis, questões suscitadas por obra e vida da autora homenageada estiveram presentes de alguma forma em praticamente todos os debates, comprovando que os rastros da Pagu fragmentária, complexa e politizada deixaram marcas no imaginário brasileiro – ainda que nem sempre reconhecidas. Se colocar as certezas em cheque é mesmo o gesto literário por excelência – como declarou a editora e crítica literária Rita Palmeira na apresentação de uma das mesas –, com ou sem apagão, a Flip 2023 pode se considerar vitoriosa.